A moça que amava os gatos

A moça que amava gatos partiu. Não deixou bilhete, nem recado. Uma das garotas mais lindas que conheci. Linda, linda. Sempre cheia de ternura e verdade. Tinha opinião e em nenhum momento ao defender um ponto de vista se mostrava arrogante ou agressiva, apenas enfática, e transbordante em sorrisos.

Certa vez encontrei a moça que amava gatos com os olhos doídos. Ela havia pego uma daquelas doenças que gatos transmitem. E vocês pensam que ela deixou de se apegar aos gatos? Não estava em pauta. Esse amor seria para sempre. Soube que ela aproveitou essa experiência e ensinou muitas pessoas ao redor como prevenir e tratar essa doença transmitida por felinos.

A conheci na Universidade Federal da Paraíba, naqueles anos em que somos plenamente felizes, ainda inocentes, cheias de muito vigor, recém-saídas de casa para “desbravar” o mundo. Não éramos da mesma turma, apenas contemporâneas, só que umas contemporâneas próximas. E por isso a gente se encontrou nesse lugar e mantivemos esse vínculo mesmo depois da graduação. Assim fomos compartilhando histórias nas imensas filas do Restaurante Universitário, da Biblioteca Central na hora de devolver os livros quase sempre com alguma multa de atraso, sentadas no pátio do Decom, embaixo das castanholas. Vendo sempre algo de vanguarda na Sala Preta. Passeando pela Sala do Centro Acadêmico (que na gestão do César, Nívea, Luciel, Carlos, Flaviano foi um dos lugares mais acolhedores e dinâmicos de nosso Departamento). Depois disso nos encontrávamos nos corredores nos intervalos das aulas de pós-graduação, nas viagens à Campina Grande para trabalhar, nas salas de aula fazendo concurso e quase sempre nas ruas lutando por uma educação de qualidade e um mundo mais justo.

A moça que amava gatos por ser tão encantadora era referência para tanta gente, inspiração sobretudo para seus alunos e alunas, uma fofa, diziam carinhosamente. Ela era sim muito fofa. Por isso talvez sinta a cartografia do mundo afetivo esvaziada, profundamente doída por sua ausência precoce e repentina. Não sei até quando todos nós que a conhecemos e fomos por ela cativados vamos chorar essa dor. O fato é que sua ida nos deixou a sensação de desamparo e impotência que nos golpeia.

2020, o ano internacional do luto não velado. Das subtrações afetivas. Do pavor silencioso. Dos genocídios acontecendo em nossa face. Da revelação de um sistema econômico falido e que mesmo assim tenta manter sua fachada. Fico esperando, quem sabe, que as nossas lágrimas diante de tudo que está acontecendo convertam-se em atitudes que, se não modificam plenamente o mundo, restaure um amor primeiro, um sentido que nos proteja de um modo de vida que nos oprima pela transformação de nós mesmos em mercadorias, ou agora, “bitcoins”.

Não sei se tudo isso vai passar, ou quando. Espero que possamos, todos os amigos e amigas da moça que amava os gatos, as músicas, o país, os amigos, seu querido irmão (tão amado também por todxs nós), ensinar, sorrir, nos encontrar numa grande roda, para quem sabe plantar uma árvore em homenagem à memória da moça mais bela que conhecemos e cuja presença nos trouxe tanta ternura e alegria.

Que de mãos dadas possamos chorar, e com muito amor por ela e uns pelos outros partilhar as memórias e canções dessa mulher que acreditou nesse país, em nós, amou a arte e a educação. A moça que amava gatos falava com muita competência sobre imprensa e democracia, acreditava e por isso também lutava. Certamente se posicionaria contra os que manifestam o desejo de esmurrar uma mulher jornalista e expressam assim desprezo pela democracia brasileira.

Gratidão a moça que amava gatos pela escolha em ser jornalista, por ter sido tão intensa entre nós e isso faz com que seu registro de vida jamais se apague. Sua Luminosidade vai continuar brilhando. Assim como sãos os faróis tirando as naus da deriva e conduzindo a um porto seguro.

Sempre em algum lugar desse planeta algum amigo ou amiga brindará a sua vida como uma forma de te fazer comungar o Tempo presente.

Incrível moça que amava os gatos que você dance na perfeita paz do Infinito, e que toda a Energia do Universo espalhe seu lindo sorriso e que a Eternidade seja banhada com tua ternura.

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