Coveiro virtual

É estranho mesmo, mas há quem adore uma notícia mórbida, mesmo aquela pessoa muito “caridosa” que diz levar em conta a dor de alguém. Me deparei muito cedo com esse tipo de realidade. Quem nasceu no interior, uns quarenta anos passados, deve ter algum registro na memória de ajuntamento de gente em torno de tragédia. Mas naquele tempo tragédia parecia algo mais raro, muito, bem mais raro mesmo.

Nas cidades do interior, no tempo que me entendi de gente, esse afeto pelo grotesco e pelo voyeurismo do sofrimento alheio se dava quando raramente acontecia uma barruada, uma virada ou um desastre de carro. Parece ser a mesma coisa, só que não. No interior são categorias distintas. Geralmente o desastre de carro correspondia ao acidente seguido de mortes. Internet?!!!! Não existia. Se alguém falasse sobre isso por lá, mesmo nos anos 1980, seria arrastado para um manicômio (a violência praticada institucionalmente). No entanto, a noticiabilidade gerada pela tragédia perpassava a cidade numa velocidade de cometa. E não era incomum gente atravessar o território da cidade de ponta a ponta para ver in loco qualquer vestígio de alguma desgraça humana.

Certa vez eu vi uma pequena “multidão” descendo ladeira abaixo, correndo, próximo à rua que morava. Aquilo me assustou, e só tomei conhecimento do fato quando escutei dos adultos de que tinha sido um pânico coletivo diante da impressão de que, num velório, o corpo do defunto havia se movido.

O fetiche pelo sangue do outro(a), pelo grotesco e a morbidez, infelizmente, anda permeando o imaginário social faz tempo. Nesse período de pandemia parece transitar entre uma profunda naturalização das mortes, decorrente de anos e anos de espetacularização da violência urbana e do ato de morrer e matar, que se constrói cotidianamente de uma forma saturada. Essa saturação faz certamente parte de um processo violento simbolicamente que traz efeitos de sentido que nos adoecem bastante.

Num tempo passado causava espanto e curiosidade as crianças e também bichos que nasciam com má formação congênita, siameses. E também existia a espetacularização enquanto fenômeno que mercantilizava a desgraça humana, ainda que não atravessasse a midiatização que temos hoje.

Numa pandemia que só no Brasil já matou mais de 120 mil pessoas parece terrível perceber um nefasto gozo pela morte do outro(a). E nisso reside um desafio imenso, difícil, de humanizar o relato das perdas sem cultivar o vampirismo. Num tempo em que a gente parece ter deixado de sentir qualquer sentimento fora do domínio do nosso território e ego, a sensação é de que a Covid-19 é algo como um filme de catástrofe veiculado numa noite de segunda-feira que as pessoas já se cansaram de ver. E sempre paira no ar a pergunta: quando tudo isso vai passar? Certamente para muitas pessoas o registro desse período não se apagará.

Contraditoriamente convive com o constante obituário virtual nas redes sociais uma infinidade de imagens de um mundo perfeito de Oz. Esse mundo mágico e encantador, aparentemente não interrompido, fluído, exitoso, glorioso, harmônico, igualitário, farto de comida e paisagens, só levemente rasurado na disruptura lançada por algum meme que, embora revele uma “leve” fragilidade desse paraíso opaco, nos leva entorpecidos e atônitos de volta aos braços de Dionísio, acalentados pelo devaneio dos risos e mais risos.

Nesses dias eu lembrei de Dona Ana, uma vizinha, bem idosa, contadora de estórias de minha rua, cuja criatividade nos causava arrepios e pavor ao, na calçada da rua, antes de dormirmos, implantar o mundo mágico e sombrio para um monte de crianças de olhos arregalados e atentos. Nem em seu auge mais criativo teria imaginado assim, um mundo apocalíptico em que as pessoas, vivendo numa realidade tão tecnológica, estavam, aos poucos, se tornando um pouco mais incapazes de sentir, de perceber, compreender as emoções umas das outras, e até mesmo os seus próprios sentimentos.

Dona Ana livrou-se de imaginar o pavor de viver num mundo dormente e ensurdecido…

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