A vida das mulheres importa

Eu nunca vi, assisti ou ouvi falar em minha vida de um homem a quem fosse imputado qualquer responsabilidade sobre a questão do aborto. Em geral, homens não são mencionados, nem quando são os violadores, estupradores, algozes. Isso incomoda muito. E mesmo quando não são estupradores, nem se mencionam os homens quando são os desertores da paternidade, ou quando impõem seja por violência física, psicológica e patrimonial uma situação de abortamento a alguma mulher.

À caça às bruxas geralmente se atualiza na sociedade quando as mulheres pautam a descriminalização do aborto deixando tão evidente para o social o quanto essa é uma questão de saúde pública. A questão é de saúde pública porque culturalmente o Estado mata as mulheres diariamente, sob diferentes maneiras. Uma delas é a visão dominante do seu papel reprodutivo dentro do sistema que gera riqueza, em detrimento de sua possibilidade de ser e existir no mundo gozando de uma vida com dignidade. Existe uma farsa hegemônica nos cenários de representação de que as “pessoas” estão preocupadas com a vida. A vida de quem? Quem merece viver ou morrer na necropolítica? Hoje muitas vidas não valem nada. Aqui mais de 100 mil foram suplantadas, e ainda seguimos em direção ao abismo nessa pandemia.

Todas as lutas femininas e feministas passam a ser desqualificadas e criminalizadas quando o enquadramento é a descriminalização do aborto, especialmente pelos setores falso-moralistas atrelados à necropolítica. A lógica do mundo é, ainda, e lamentavelmente, a de um projeto de dominação masculina, representado especialmente por crenças religiosas, sejam elas quais forem. Para isso não há divergência dogmática, rezam pela mesma cartilha “cristãos” e não cristãos. A face religiosa do social é hegemonicamente masculina, e essa é uma chave interpretativa das mais relevantes para entender o mecanismo histórico de sujeição das mulheres a todas sorte de violências(mas não se iludam com os descrentes e ateus que podem também caminhar pelo mesmo sistema de valores quando o tema é a vida e os direitos das mulheres), mesmo que para isso se subtraiam os ensinamentos de Jesus na sua relação com as mulheres e a justiça.

Muitas mulheres no mundo decidiram não querer assumir esse tipo de projeto dominante, excludente, perverso e porque não dizer, falido, destrutivo, sanguinário, colonizador, que vai corroendo o Planeta e todxs como espécie. As mulheres tiveram ao longo do tempo que revisitar o momento da história da humanidade em que foram subjugadas. E ainda se unir a outras mulheres e homens para poder existir com o mínimo de integridade. Muitas mulheres (mas não todas, infelizmente) tentam, cotidianamente transformar uma estrutura social violenta que afeta a todas as pessoas do Planeta, inclusive a própria Terra. E que afeta muito mais as mulheres que, ainda no século XXI, são as maiores vítimas das violências praticadas.

Estou falando nesse assunto porque essa semana foi marcada por uma cena grotesca, maniqueísta, e por uma estratégia perversa da necropolítica em tentar manipular o sistema de justiça e a opinião pública, diante da necessidade de uma criança, estuprada desde os seis anos de idade, e grávida, aos 10 anos, de ter sua vida preservada, porque corria risco de morrer, precisava ser assistida, e o sistema de Justiça do país assegurava sua assistência. Existe muita perversidade nesse acontecimento. Essa criança, lamentavelmente, é uma dentre tantas e tantas outras que são vitimadas no Brasil, inclusive pela pedofilia sistêmica que segue por diversas vezes preservada, silenciada pela bandeira da “moral” e “bons costumes”.

Aborto não é método contraceptivo. Quando se discute a descriminalização do aborto é porque existem mulheres violadas em toda sua dignidade, sobreviventes de um sistema social que em grande parte destrói a dignidade das mulheres. Um modelo que as consome cotidianamente. Que em grande parte as coloca como descarte, especialmente se forem mulheres pobre e negras, se forem das periferias do mundo. Mas venham de onde vierem, a bem da verdade é que o fato de serem mulheres as coloca numa situação de insegurança. A vida das mulheres importa, e por essas vidas lutamos.

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