Confessionários, consultórios e abuso

Recentemente a população brasileira tomou conhecimento das denúncias de inúmeras mulheres abusadas sexualmente pelo líder religioso João de Deus. Como também de crimes sexuais praticados por médicos no santuário de seus consultórios. Infelizmente essa liderança não configura ser a única, conforme declaração da ativista Sabrina Bittencourt, em entrevista publicada em revistas de circulação nacional.

Diante dos abusos cometidos pelas lideranças religiosas e representantes de instituições de prestígio, o Século XXI marca um ponto de referência importante no enfrentamento à violência sexual cometida contra mulheres, crianças e adolescentes: a quebra do silenciamento e a midiatização dos casos.

Compreendemos que o silenciamento por vezes é um trunfo na mão de abusadores, sejam sujeitos ou instituições. Consideramos portanto importante nas sociedades democráticas o papel que a imprensa representa no enfrentamento dessa questão. Daí lembramos o quão fundamental foi o Caso Spotligth, responsável por trazer à tona mundialmente os casos de abuso sexual e pedofilia no interior da Igreja Católica. A investigação do The Boston Globe foi vencedora em 2003 do Prêmio Pulitzer de Serviço Público nos Estados Unidos.

O que veio depois disso foi de extrema importância mundial, na medida em que a instituição religiosa passa a ser responsabilizada pelos casos judicialmente, além de publicamente ter ao menos que se posicionar frente aos abusos cometidos por seus representantes. Sempre me pergunto também se pedir perdão por meio de porta-vozes resolve. É um passo, acredito, mas espero algo mais efetivo, que não sei se virá.

Abuso sexual em instituições religiosas parece ser algo de longa data e parece tomar contornos sistêmicos. Em toda experiência de participação em comunidades religiosas (cristãs), apenas duas vezes presenciei a temática ser discutida. No âmbito das igrejas protestantes (espaço que costumo frequentar desde os 13 anos de idade) a postura de silenciamento persiste em grande parte das instituições. O medo de causar escândalo ao Evangelho é sob meu ponto de vista um argumento danoso capaz de encobrir múltiplas formas de violência, inclusive a sexual. Não por acaso, também assistimos, vez por outra, denúncias de assédio sexual e estupro vindo de lideranças evangélicas.

Em contrapartida cresce um discurso público, emergente no interior das igrejas, centrados nos estereótipos de gênero. O que pretende esse discurso, a quem deseja proteger, o que necessita mascarar ou amalgamar? A condição de gênero é central hoje no campo das instituições religiosas? Porque se for, ela precisa de fato incluir a violência simbólica praticada na estruturação da cultura do estupro subjacente em inúmeras narrativas presentes no cotidiano das religiões, sejam elas cristãs, de matriz africana, budistas, esotéricas, ou no ateísmo.

Lamentavelmente o fato é que do Congo ao Brasil, de Norte à Sul do Globo Terrestre, circulam narrativas no campo da fé que personificam na figura e no corpo da mulher o demônio, o pecado, algo a ser possuído, dominado e aniquilado. E essas tessituras simbólicas, nem sempre sutis, atravessam as culturas, religiões e temporalidades. As mulheres e muitos homens têm lidado e enfrentado essa demonização do feminino ao longo da história da humanidade.

Espero, ingenuamente, um dia, que haja um despertar para uma espiritualidade harmônica, não bélica, ou predadora, não colonizadora, que espelhe de fato um compromisso com a Vida humana de maneira não segregada ou separatista. Embora saiba que o sentimento é expressão de um sonho.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *