Os 90 Anos de A Bagaceira

Recebi ano passado o convite para participar de uma mesa redonda comemorativa aos 90 anos do romance A Bagaceira, do escritor José Américo de Almeida. A participação na mesa se deu pelo fato de pesquisar na imprensa aspectos da construção social das notícias sobre a estiagem e a comunicação para a convivência com o semiárido.

A obra que só conhecia pelas aulas de Literatura Brasileira, me trouxe grande emoção. Tenho mania por vezes de começar uma leitura pelo fim. O contato pelo texto se deu de tras para frente. Explico: comecei a refletir sobre o romance, a partir da linguagem. O Glossário original do livro, de autoria de José Américo, possibilitou um reencontro afetivo com palavras da infância. Confesso que foi uma emoção poder tocar palavras antes perdidas da imaginação. Embora o livro tenha sido publicado em 1928, aquelas expressões ainda eram muito presentes em meu cotidiano de criança nascida numa cidade do interior da Paraíba. É possível ainda hoje encontrar esse regionalismo bem vivo na linguagem popular, nos sítios, nas feiras, nos bairros, na fala de anciãos e anciãs.

Não apenas dei risadas ótimas ao pronunciar novamente aquelas palavras e senti uma emoção boa ao localizar afetivamente algumas. Mas absorta fiquei ao perceber a etnografia constituída pela cartografia da linguagem de nosso povo tão bem descritas por José Américo de Almeida. Expressões do sertão e do brejo.

Trouxe muito espanto observar o quanto as palavras emergentes do meu lugar de origem, embora incompreendida por alguns, são tão cheias de precisão, de sentido encarnado, uma oralidade precisa, uma estrutura de pensamento filosófico. A gente não tem “papas na língua”. Os verbetes trazidos pelo autor demonstram seu compromisso intelectual de tornar visível ao Brasil a variedade linguística que marca a identidade de nosso povo.

Ao ler A Bagaceira e refletir sobre o imaginário da seca presente no livro, tive uma certa inquietude ao longo dos dias em que estava imersa na leitura desse enredo espetacular que bate de 10 a 0 muitas séries de TV. Fiquei pensando como a representação do Sertão é algo exógeno. Sou de uma cidade chamada Patos. Só vim me referir ao Sertão quando migrei para o Litoral. Porque ao dizer de onde vinha, sempre alguém dizia, “é do Sertão”. Levei um bom tempo para compreender melhor que ser do Sertão era um marcador de diferença em relação a aspectos econômicos, históricos, políticos, sociais e ambientais.

Não é fácil lidar com o imaginário do Sertão, da literatura ao noticiário cotidiano, a bacia semântica que constitui nossa identidade é para mim bastante complexa. Porque vai do romantismo ao estigma. Vai da clássica afirmação de Euclides da Cunha, “de que o sertanejo é acima de tudo um forte” vinculado ao significado cristalizado de que a gente suporta, ou tem que suportar tudo como “raça” que difere, como também à constituição da imagem dos “flagelados da seca” enquanto violência simbólica, que imprime no imaginário social brasileiro, lamentavelmente, até hoje, a ideia fascista de que a população do Nordeste é uma “raça inferior”. O que faz vigente nos dias atuais o preconceito e ataques, ainda que sutis (ou nada sutis) contra nordestinos.

Pensei ao ler A Bagaceira nos processos de hibridização dos territórios do sertão e do brejo, do mundo urbano e rural, das linguagens. Refleti também sobre a mulher sertaneja como um arquétipo, porque a personagem Soledade, na descrição do autor se mostra como livre, intuitiva, uma feminilidade que luta, mas por representar perigo, traição, é subjugada pelos personagens masculinos. As masculinidades descritas encarnam autoridade, valentia, força e racionalidade.

Não é fácil ser mulher, e ser mulher nos sertões tãopouco. No entanto, o arquétipo da mulher selvagem é muito importante, porque é um imaginário que funciona também ao nosso favor. Nos restitui à lógica que envolve liberdade. Marcadas pelos processos migratórios, da realidade do êxodo da população masculina, as mulheres do sertão logo cedo foram, por força da conjuntura, promovendo fissuras e rupturas no cotidiano com os padrões sociais impostos à identidade feminina.

Muitos destes padrões eram e são de certo modo um engano, uma ficção. Na prática muitas mulheres sertanejas, ricas ou pobres, deram “nó em pingo d’água” e desconstruíram cotidianamente o patriarcado. Assumindo negócios, sendo chefes de família, gerindo propriedades, sendo donas de seu próprio dinheiro, enfrentando a violência física, tapeando os mandamentos da Igreja para assumir o controle de sua vida reprodutiva(tomando chá para menstruar por exemplo), escolhendo a quem amar, e tantas outras façanhas. Não olho para esse processo histórico de forma romântica, porque essas lutas travadas tiveram seu preço.

Todavia reconheço que esse espírito livre de muitas de nós sertanejas está ligada a trajetória das mulheres que vieram antes de nós. Muitas que não se apartaram da natureza, ao contrário, compreendiam muito bem seus ciclos de sol-chuva, as luas, os ventos.

O Sertão é para mim um signo inacabado, está em aberto. Ainda que as representações sociais dos ciclos de estiagem ancoradas numa visão mítica tentem forçosamente nos encerrar na sequidão. Não quero incorrer numa visão romanesca ou dualista para meu lugar de origem. Considero apenas que de fato há uma mística em pertencer a esse lugar, ou melhor, existir entre-lugares. Porque os ciclos migratórios nos que marcam possibilitam a coexistência de outros mundos, sem que a gente se desvencilhe de todos os sentidos desse pertencimento.Ser originalmente de um lugar denominado também Morada do Sol me fez ter uma imaginação muito fértil nutrida por diversas histórias narradas por velhas, uma delas chamada Dona Ana, minha vizinha, contadora de histórias.

Certa vez ao entrevistar uma conhecida proprietária de terras da minha cidade, ela me descrevia que num tempo não muito distante, os homens no delírio de suas farras, ao amanhecer, leiloavam o Sol. Conheci mulheres que faziam suas preces para a Lua e que guardavam esse segredo, deixando apenas que nós meninas pudéssemos estar perto, observando seus ritos de passagem, suas bendições.

A Bagaceira é mais que um romance histórico que inaugura o moderno na literatura brasileira. É um marco sociológico importante para interpretar nossa cultura. Li antes de A Bagaceira, A Paraíba e seus Problemas, também escrita por José Américo de Almeida. Entretanto, ao pensar os 90 anos de A Bagaceira e a força desse enredo, pude revisitar muitas categorias socialmente construídas para representar nós sertanejos e sertanejas, personagens de muitas histórias.

Por fim, gostaria de ressaltar a alegria de percorrer as linhas desse romance incrível, de muitas nuances, ambiguidades, de uma descrição singular da natureza dos territórios do brejo e sertão. De me assombrar com as mudanças no enredo. De matar as saudades de Areia. De retornar a língua nativa, de identificar nos tipos humanos descritos por José Américo de Almeida, figuras próximas, tão reais. Tocar a nostalgia da narrativa encarnada em alguns dos personagens. E de conhecer as gravuras incríveis de Poty, que me remetiam o tempo inteiro as imagens de meu interior.

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