Além da peste, a fome

Todos os dias enquanto passo a vista nas redes sociais acompanho a mobilização de muitos segmentos para livrar muitas pessoas e famílias da fome. Distante do agendamento midiático durante algum tempo, a pauta da fome retoma com força, como expressão de uma desgraça nunca superada. A fome e a insegurança alimentar dizem muito mais das profundas desigualdades que vivemos aqui, do que propriamente pela escassez na produção de alimentos. Nunca passei fome, embora reconheça o esforço imenso das gerações anteriores para poder manter o básico dentro de casa. Quando falo básico, era o básico mesmo.

Ao olhar para trás, puxando o fio da memória em marcha ré, é assustador perceber que nos anos 1970, 1980, a insegurança alimentar era menor que hoje em dia. Que, embora houvesse pouco poder aquisitivo para compra de alimentos, sobretudo no interior, nas pequenas cidades, tudo que chegava às mesas naquele período é o que se indica como primordial em muitas dietas da cultura fitness. Não nos faltava inhame, macaxeira, tapioca, batata-doce, arroz da terra, feijão-verde ou feijão-de-corda (macassar), ovos e galinha de capoeira, leite puro, cuscuz (que agora viraliza na internet), frutas (especialmente as nativas). Não existia lá muita carne de boi, é verdade. Tínhamos o hábito de tomar suco e não refrigerantes. De comer alimentos in natura, e não enlatados, ou processados. E tudo isso aos poucos começava nesse período a ser colocado como atrasado, pois o moderno mesmo era toda comida que vinha no saco, na lata, no plástico. Assim a propaganda ia aos poucos nos conduzindo a uma normatização do sabor, e a uma constante precarização da dieta, e perda da cultura alimentar que é parte fundamental da vida de um povo.

A fome, infelizmente, nunca deixou de existir. Mas a mudança nos padrões alimentares alinhada à precarização e desaparecimento dos postos de trabalho, e a alta constante dos preços (sem regulação) potencializa a fome, a coloca num estágio que desumaniza a todos e todas nós. O Brasil hoje vive sob o imperativo da fome e da pandemia. Não as vejo como fatalidades. Tanto uma quanto outra passa pelo crivo da vontade, capacidade e organização política. E pela vida em sociedade.

O que posso ver hoje em relação a fome é sobretudo o envolvimento maior de pessoas, as vezes não tão ricas, que se mobilizam para fazer chegar ao menos uma cesta básica na casa de alguém, ou um prato de comida. Essas cenas viraram rotina. A fome de hoje é mais feroz, é a expressão de um liberalismo também autodestrutivo, porque consome a condição de vida no Planeta. A fome de hoje é consequência da extrema concentração de renda, não por falta de alimentos. A fome de agora é pela crueldade do descarte absoluto da força de trabalho e do desprezo a capacidade criativa e produtiva das pessoas. É pelo maquiavelismo da relação Estado e mercado. Penso até que nem mesmo exista mais essa ideia de mercado, como num passado mais recente.

É muito bonito de ver a solidariedade. Mas minha cabeça martela sempre que ela, para enfrentar a fome, não é suficiente. A fome é sistêmica, é estrutural. Com ela se intensifica a violência que atinge, de forma diferente as pessoas, mas atinge a todas as pessoas. Há de fato quem se iluda com um carro blindado, com a vida num condomínio afastado e fechado, a vida no grupo seleto. Numa sociedade extremamente desigual onde impera a fome não há lugar seguro. A segurança não passa de uma fachada, uma ilusão.

Por aqui há uma luta constante pela sobrevivência, a fome do passado não é a mesma do tempo presente. Eu temo em certos momentos quando penso na mudança climática (que não deveria ser tema apenas para ambientalista), na privatização da água, nas queimadas e desmatamentos constantes, nos processos de desertificação, no uso de agrotóxicos. Se hoje é difícil ter o que comer, é desafiador o acesso à água. Não quero parecer catastrófica. Não quero também me abster.

Apenas fico refletindo cá com meus botões, e compartilhando aqui algumas questões, porque tanto quanto respirar, essas questões são fundamentais. Imagino como será por aqui, se conseguirmos superar a pandemia, nosso processo de reconstrução interna. Me questiono sobre quais fomes atravesso. Enquanto tento não ser levada por necessidades banais.

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