Um caderno de receitas

Enquanto escrevo relembro que faz um ano que eu, prestes a entrar num estado de luto, começava acompanhar a via crucis do corpo de minha irmã. A bem da verdade, desde dezembro de 2019 me rondava um medo interno. Daqueles pavores silenciosos que surgem quando você tem uma intuição profunda de que algo não está bem, que há perigo, mesmo que não se fale nada. Há de fato coisas invisíveis a olho nu. É preciso a escuta atenta à intuição. Acho que é algo bom intuir, mas às vezes pode parecer assustador. Eu vinha arrastando comigo silenciosamente um medo de perder minha irmã, o que se tornou realidade ano passado. Eu fiquei novamente enlutada. Mais uma vez.

Agora, meu luto se juntava ao luto de milhares de brasileiros. Numa realidade na qual não tínhamos sequer a condição, mínima, de fazer um momento de despedida, reunir família, pessoas mais próximas e tantas pessoas que a amavam e por ela eram correspondidos. O que restou foi um simbolismo de uma celebração mediada por computadores. Honestamente, uma das coisas mais surreais da minha existência até aqui. Essa experiência fez o filme Encaixotando Helena (Jennifer Chambers Lynch) parecer a coisa mais regular. Fazia a clássica cena da chuva de sapos do filme Magnólia (Paul Thomas Anderson) não expressar nada inusitado. Eu não entrei em choque, eu fiquei blasè. Percebi que de certo modo, a atmosfera do Planeta me indicava a realidade de um mundo que se diluia.

Há um ano atrás eu não imaginava que esse luto meu, partilhado por algumas pessoas que também estavam se despedindo das pessoas amadas iria se tornar do tamanho de uma Via Lactéa. Imagina um luto que nunca pára, intermitente, diário, cujos números jamais vão dar o sentido do desmantelo emocional de um povo. E embora seja mais visível para a imprensa a morte de pessoas consagradas na política, nas artes, nas mídias, há em muitos lares do Brasil um choro, um desaparecimento precoce, uma revolta com a concretude do descaso com a vida e a tentativa de salvar uma economia, que desmorona ano após ano, antes mesmo da pandemia. O Capitalismo não é mais o mesmo faz tempo. E não adianta vir o argumento de que a pandemia acabou com a economia, porque essa crise é mais anterior e estrutural, seja nos países ricos, emergentes, pobre e totalmente explorados. A crise é Planetária, é sobre nosso modo de vida na Terra. E a tentativa desesperada de manter lojas abertas e acreditar que o consumismo nos salvará só amplificará o número de mortos por aqui, lamentavelmente. Precisamos de vacina urgentemente e de um novo modo de ser, sustentável preferencialmente.

Perdi uma irmã, amigos e amigas, colegas, vejo pais e mães perderem sua descendência, e testemunho de uma orfandade generalizada. Somos uma gente traumatizada, por um genocídio em curso. As redes sociais se tornaram no Brasil uma teia de obituários. E ainda não consigo compreender porque se insiste ainda na ideia de novo normal, quando o imperativo é a total anomia social. De certo modo penso que o resquício salvacionista é uma tentativa de estabelecer uma mínima ordem no caos.

Mesmo que mandem a gente se untar de álcool gel, usar máscaras e não aglomerar, a superação de uma pandemia não é algo individual. Precisamos de coordenação, vontade, planejamento e ações estratégicas entre poderes, diálogo e participação da Sociedade Civil, o mínimo. Um certo otimismo forçado por parte de algumas autoridades das autoridades me lembra muito a personagem da Rainha de Copas de Alice no País das Maravilhas, insistindo em pintar as flores brancas de vermelhas.

Bem, tento superar o luto, a gente vai ressignificando, fazendo memória, fluindo amor, juntando os cacos. Só que quando a gente pensa que entra numa certa estabilidade chega sempre a notícia de alguém querido que parte precocemente, levado pela foice da necropolítica. E eu que dormia com as galinhas, há meses vejo o anoitecer se transformar no dia seguinte.

Esse final de semana, Domingo de Páscoa, fui tentando costurar a dor da saudade. Imaginei a irmã ressuscitada (como ela mesma acreditava). E como a convicção dela nesse quesito era imensa, fui me apegando a Esperança.

Mesmo sentindo medo de perder mais pessoas, algumas delas já internas por Covid-19. Decidi pegar os cadernos de receitas que minha irmã fez para mim, fui ver sua letra, ler as mensagens que me mandava através dos cadernos, e fiz uma de suas receitas preferidas do Natal.

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