Saudade, essa constante

Quando eu soube do livro por um comunicado de uma vaquinha virtual fiquei muito empolgada. Ao saber do título do livro, disse para mim mesma: eita que título maravilhoso! Acho que por sintonia. Uma cumplicidade espontânea. Porque sinto assim, esse lirismo da saudade. Sou saudosista, o passado, longe de ser um fantasma, é um afago, um cheiro sentido silenciosamente, capaz de compor uma narrativa, uma sonoridade, uma série de imagens mentais de tudo que fui e das presenças marcantes da vida: seja uma pessoa, um caderno cheio de rascunhos, odores, paisagens, ou sabor de algum tempero… Tudo isso tempo vivido, experimentado de modo indivisível, ou compartilhado.

Ao ler todas as páginas de “Quando a saudade me visita”, eu queria muito dizer para o autor, o jornalista Phelipe Caldas, que o lirismo da saudade é lindo, ainda que por vezes doído. Porque ela fala também das ausências mais amadas não é? E que são compensadas também na poética que há nos sonhos. Sim, nesse inconsciente que como portal nos traz de volta quem amamos e teve que partir, ou nos projeta na imaginação onírica, em que tudo se faz possível, inclusive subtrair a morte.

Durante semanas abri as páginas do livro para encontrar seus personagens, como sendo tão parte dos meus, tão próximos da vida de cada um de nós. E foram eles que nos últimos dias me ajudaram a atravessar as noites. Entrei na casa da rua Vigolvino, com sua licença poética, e passei por seus cômodos e objetos e lembrei da nossa casa na Rua do Prado, a 313, que deu lugar a um prédio. Que guarda as imagens da adolescência livre das pressões do tempo de crescer.

Querido Phelipe Caldas, as lembranças galopam enquanto a gente se debruça no papel, na tela em branco. Porque talvez elas sejam mesmo parte dessa pulsão de vida insistindo em seguir. E chegam a entrar em determinados momentos da vida, em grande erupção. Talvez elas nunca adormeçam, permanecendo em nossa pele, sendo parte de todas as camadas de nosso ser.

Agradeço os risos com lágrimas que as tantas histórias contidas em seu livro me proporcionaram. Narrativas sobre futebol que me fizeram reencontrar a família dos torcedores. Aí lembrei da mãe corintiana, dos irmãos flamenguistas, dos que torcem pelo Fluminense e Botafogo. E da minha torcida solitária pelo Vasco. Quando a casa era habitada por todos e todas, era sim a envergadura de um time de futebol. Com suas lutas, energia, entusiasmo. E nesse meio eu teimava em ser nadadora.

Te peço para quando a pandemia acabar, você me levar, junto com a Polly, num boteco. Penso que boteco talvez tenha sido a cara do meu pai jovem, boêmio. Como nasci menina fui levada às igrejas e praças de interior. Mas sempre gostei das comidinhas de boteco. Porque ao romper a madrugada e chegada a hora da feira livre sempre havia daqueles bons, abertos, e que ofertava os melhores caldos de mocotó, costela, e picado. E desse modo aprendia sobre os sabores da minha terra. Em lugares próximos à feira livre, muito simples, pequenos, com panelas bem ariadas, e um cheiro delicioso de molho de pimenta em conserva. Para saber a expertise da gastronomia do bar ou boteco me habituei primeiro a cheirar o molho de pimenta para decidir se peço ou não o petisco.

Também sinto saudades do café com leite, do pão com manteiga assado na brasa numa grelha, ao som de Luiz Gonzaga. Das pancadas de mainha nos punhos da rede a me acordar. Do tempo em que corria por cima de máquinas de costura do universo da sapataria, sem nem me dar conta do risco. Simplesmente correndo por cima das máquinas e mesas imensas, por cima dos rolos de couro e em torno das montanhas de caixas de sapato. Saudade de nem me dar conta do risco que era estar, por exemplo, num terceiro andar brincando de se esconder num espaço alto, com janelas imensas e sem rede de proteção. Sabíamos apenas inconscientemente que existia os limites, mesmo ali, na infância, entre vida e a morte.

É tanta coisa que essa latência chamada saudade nos traz. Quando eu vi a capa linda de seu livro fui enviada ao ano de 1979. Em setembro mais precisamente, quando menina, cabelos compridos e amarrados, entrei naquele carro pela primeira vez. A imagem dele nunca saiu da minha cabeça. Onde naquele ritual vi quase tudo pela janela. Fui me despedindo ali de meu avô poeta, que amava a cantiga de viola. Era a vivência de um luto, quando eu nem sabia ao certo nomear o que era saudade.

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