Um banho no mistério

Quando entro no quarto de banho penso nos rituais das mulheres orientais dos muitos filmes israelenses, palestinos, iranianos que vi ao longo do tempo. Momento ritual, purificação. Lembro também dos cenotes do México, das cachoeiras em que pude me banhar, das imagens das lavadeiras à beira do rio, e dos riachos que umedecem as paisagens sertanejas. Indivisível, esse lugar em que as águas nutrem vida.

Na infância o quarto era pequeno, claro, e dava para o quintal da casa, repleto de plantas. Nele está a lembrança de haver salvo o irmão por volta de um ano, que meu pai havia deixado numa cisterna com a torneira ligada. Era pequena mas dentro de mim alguma coisa se passou e senti que havia perigo, chamei minha mãe para socorrer. Foi ali que pela primeira vez escutei com clareza a intuição e decidi seguir a escuta dos lugares de dentro.

Numa casa com muitas pessoas e escassez de água a passagem pelo quarto de banho passa a ser rápida, objetiva, seja pela necessidade de outros(outras), seja pela economia em torno do precioso bem que é a água. Nessa época os rádios de pilha passaram a me acompanhar meus rituais de purificação, e assim foram se passando os anos 1980.

Houve um período na vida em que compartilhei o quarto de banho com inúmeras garotas que moravam na Residência Universitária Feminina da UFPB. A maior parte de nós tinha medo de ir lá, sobretudo à noite, mesmo as que não falavam. Por haver sido um prédio onde funcionava uma antiga escola de enfermagem, havia toda sorte de histórias sobre malassombro. O fato era que durante o dia ao entrar lá, quase sempre a gente encontrava uma menina lavando suas roupas na lavanderia, era um costume. Imagina ter que ir no quarto de banho depois da meia-noite. Embora os quartos fossem bem colados, vizinhos, sempre era comum a gente seguir em disparada, como numa maratona, correndo com medo das energias invisíveis. Mesmo que depois a gente risse muito.

Há momentos da vida da gente que se passam nos quartos de banho. E como a água nos purifica mesmo, refaz nossas forças. Lembro bem do banho depois de enterrar minha mãe, são cenas que ficam gravadas no corpo. Como também lembro perfeitamente da imersão que fiz no Chile quando estava grávida, em que tomei meu banho mais demorado. Horas numa banheira antes de pegar um vôo para o Brasil. Naquelas águas fui abençoando meu corpo e meu filho para sua chegada ao mundo.

Foi num quarto de banho que guardei a imagem daquela barriga imensa, linda, com toda a nudez de frente ao espelho. Ali me despedi da minha gestação para entrar numa sala de parto. Até hoje sinto falta dessa fotografia não materializada num papel. Porque de certo modo havia algo de mim que partia, e outra parte que nascia. Poucos minutos depois um cordão umbilical foi cortado.

Eu falo do quarto de banho hoje, como uma forma de transmutação da tristeza que paira diante das mortes por falta de oxigênio. Nem toda água do Amazonas vai ser capaz de limpar as mãos sujas do sangue inocente que jorrou por indiferença, incompetência e desdém.

O quarto de banho se torna um lugar de cura, de autocuidado, da busca por serenidade, do alívio. Há banhos e “banhos”. Ser batizado. Estar imersa nas águas do chuveiro, dos rios, dos mares, cachoeiras, saltando as biqueiras sentindo as águas das chuvas. Eu e água.

Desde os anos 1980 que levo música aos quartos de banho. A escolha das canções dependem muito do estado de espírito. Vez por outra levo as velas, para trazer mais calma e suavidade, quietude. É quando o banho se torna uma experiência filosófica. Entrar na própria caverna e pensar sobre as réstias. A fênix se refazendo…

Em tempos da pandemia, luto e maldade as águas nos ajudam a não submergir.

Banhar-se em lágrimas é também parte dessa ecologia do quarto de banho. Diz respeito à ver as coisas da vida com mais clareza. É o exercício de manter a vida criativa, e as águas claras. Ainda pode ser uma maneira de ir recuperando o vigor do corpo e perceber as energias vitais confluindo.

O quarto de banho pode ser uma vivência de acalanto, daqueles que a gente já fez às nossas crianças quando as seguramos e as banhamos pela primeira vez.

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