A mata da barreira

Há quase seis anos moro próximo de um pedaço muito pequeno de Mata Atlântica. Toda vez que olho as fotos do lugar em que moro, nos grupos de fotos antigas da cidade, me dá uma dor e uma dó tremenda. De que todo o esplendor natural tenha se transformado em pedaços de concreto. Mesmo que viva aqui. Fico pensando que esses passos e decisões são mais uma involução do que um “progresso”. Romantismo? Pode ser, quem sabe?

Venho observando esse lugar em vários momentos do dia, afinal são seis anos, e daqui há pouco uma década. Sempre solto uma notinha no grupo da rede social que faço parte, onde estão colegas de profissão. E a gente sempre reflete que as pautas ambientais são pouco representativas. Elas tocam em muitos interesses. E há muito tempo que a natureza deixou de ser algo que verdadeiramente importe. A não ser por alguns jovens Planeta afora, que fazem greves, que chegam a ir às ruas, ocupam algum espaço no ONU para falar da tragédia climática. Porém quantos levam mesmo a sério o que diz, ou tenta dizer, a juventude?

No meu isolamento, solidão, e impotência, eu sigo vendo a Mata do Cabo Branco ir minguando nesses últimos anos. A mata se transformando em depósito de lixo, estacionamento para motos, passagem. Certa vez decidi circular a mata caminhando, durante a pandemia. E era super visível na parte de acesso pelo Altiplano as trilhas entre a mata. Quem liga? As árvores, cada vez mais rarefeitas, vão sendo ceifadas pelo tempo, pela ação destrutiva das pessoas, pelos pequenos incêndios no verão, e também pelas chuvas que fazem desabar a barreira que, já sem vegetação, não se sustenta mais.

A Mata do Cabo Branco poderia ser chamada de patrimônio, só que isso seria subjugar todo um ecossistema a monetarização talvez. Esse lugar é o que ainda vai sobrando de oxigênio na cidade que vai perdendo a epiderme com a eliminação das áreas verdes. E em vez disso, vai construindo os paraísos artificiais nos condomínios que aparentam ser um misto de cassino e, quando olhados com um pouco mais de distanciamento, prisões fashion. Claro que não se reduzem apenas a isso. Porque representam de certo modo a tentativa desesperada de crer num modo de se sentir de alguma forma seguro, seleto, intocáveis e gozar da paz, nesse mundo instituído por um paradigma securitário cercado de ruínas físicas e mentais.

Hoje quando voltava para casa fui mais uma vez contemplando a Mata, que vez por outra é um motel também. E se pode ver, mais raramente, algum casal sair desconfiado das moitas. A Mata também é um ganha pão para muitas mulheres que como os ipês que floram em seu interior, a deixam mais colorida: amarelo, laranja, pink…

A Mata do Cabo Branco carrega tanta poesia, verdade e visibilidade da vida humilde que desce e sobe suas ladeiras para viver e sobreviver da beira-mar. São mulheres e homens vendedores com suas carrocinhas de água, bebida, comida. São crianças e seus cachorros que chegam junto com pais e mães para seus dias de trabalho. São famílias inteiras para se confraternizar em torno das águas do mar. Essa procissão acontece a granel, e se realiza cotidianamente.

Esse mesmo trecho de mata atlântica produz cenas incríveis conforme a passagem da luz do dia. Essa passagem vista seja de cima de algum apartamento, ou de baixo, nas suas ladeiras, é de uma poética que nos refaz. Exceto pelo momento em que as almas nervosas, nos horários de pique da vida urbana, manobram seus carros.

A tarde, seja cinzenta ou iluminada, pode ser contemplada a partir desse lugar sagrado. Essa cena em minha mente e olhos está sempre em movimento, porque as nuvens sob o ponto de vista desse território parece sempre estar mais perto e bailando com as copas das árvores. Todos os dias pintam uma tela diferente pela qual passeiam urubus, gaviões, beija-flores, andorinhas, bem-te-vis, da parte de cima. E da parte de baixo passeiam tejuaçus, gatos e seus filhotes, cachorros, raposas, e tantos outros animais.

A Mata do Cabo Branco também tem uma orquestra sinfônica, e por vezes nem se precisa fechar os olhos para poder escutar, porque as cigarras vão se fazer ouvir. O triste é ver e pensar que como a barreira, ela pode se tornar apenas uma tela, tal qual as imagens saudosas do querido artista Hermano José.

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