Racismo, não mais embaixo do tapete

Uma vez numa noite enluarada em 1996 uma pessoa me falava que em seu país as pessoas tinham um medo de pessoas negras, porque as associava ao perigo, à criminalidade, que essa era uma questão difícil em seu lugar de origem. Eu escutei aquele relato com grande surpresa. Porque até então tudo que vi durante muito tempo na TV sobre aquele país, em geral desenhos animados e filmes na clássica Sessão da Tarde, desenhavam o lugar como o mais inclusivo e democrático de todos. Lá nos filminhos sempre havia alguém negro, asiático, latino, branco e por aí nós crianças e adolescentes na parte de baixo da linha abismal, observando por uma tela programada, abaixo da Linha do Equador, acreditamos numa certa representação do que era produzido sobre ser a diversidade e inclusão. Para entender o racismo estrutural certamente seja preciso desconstruir históricas, potentes e enganosas formas de representação.

Semana passada, com a brutal morte de um homen negro, diante de uma violência descomunal, as lutas antiracistas retomam a pauta na imprensa. Mas surge, ainda que de uma maneira conflitiva, um contra discurso, negando o racismo. Infelizmente não é preciso muita inteligência para perceber o negacionismo como uma estratégia política vigente na sociedade opera na tentativa de desqualificação das discussões públicas e demandas sociais urgentes.

Vamos falar sobre o óbvio, por vezes não tão aparente. Sim, muito, mas muito óbvio mesmo. Numa sociedade que não fosse racista, as pessoas negras não seriam vitimadas pelo ódio à sua cor, e condição de classe social. Aqui no Brasil pessoas negras são as que morrem em grande número por balas perdidas. Elas também são as que estão vivendo nas áreas mais empobrecidas e seguem trabalhando muito, exaustivamente, e enfrentando dificuldades históricas e estruturais para superar as condições desiguais. Numa sociedade que não fosse racista os jovens negros não estariam sendo levados aos montes às delegacias e penitenciárias, até sem provas concretas de ato infracional. São muitas vezes levados porque alguém suspeitou.

O racismo estrutural no Brasil é um fosso que se tenta mascarar. Por aqui o racismo é carnavalizado. A gente precisa ir tirando as máscaras, uma a uma, são muitas, inúmeras. Inclusive o desconstrucionismo precisa estar presente no campo intelectual, por ter sido um dos lugares cuja violência do racismo foi se institucionalizando, tentando encontrar encaixes e zonas de conforto e reprodução da violência hedionda que é de fato o racismo. Muitas teorias criaram um faz de conta de que o Brasil não é racista.

Todos os anos, desde 2004 eu sempre observei as propagandas das escolas, em suas campanhas de matrículas. E eram raros, raros de verdade os materiais que traziam crianças, adolescentes e jovens negros, meninos ou meninas, mesmo sendo estes parte de sua comunidade escolar (que inclui docentes e demais corpo técnico). Nada no outdoor, folder, manual de matrícula, cartaz, propaganda de tv ou mídia social. Ainda hoje eu continuo observando que pessoas negras não apenas por serem por vezes excluídas de visibilidade, como também por terem suas imagens, representações manipuladas e distorcidas.

Pessoas negras são ainda, lamentavelmente, mercadoria midiática, que capitaliza muito os corpos de pessoas negras ao ritualizar à violência e fomentar a cultura do medo em programas de televisão que destroem a dignidade humana. Esses subprodutos do fluxo midiático encarceram simbolicamente pessoas negras, violentam diariamente. A comunicação grotesca, muito lucrativa por sinal, é constituída com base no racismo estrutural, e tudo isso é muito perverso. Num país em que não existisse racismo isso jamais seria uma prática cotidiana.

Há um traço perverso quando a questão do racismo no Brasil é pautada, deflagrada por questões de violação e morte da população negra, e algumas pessoas chegam afirmando para se ter cuidado com a disseminação do ódio racial que me soa como uma forma de controle, de censura e de interdição.

A bem da verdade é que por essas bandas de cá muitas pessoas se compadecem mais das paredes de Catedral de Notre Dame queimando, do que as crianças sendo mortas por balas perdidas dentro de casa ou à caminho da escola. Mas não existe racismo no Brasil. As pessoas se mobilizam mais para votar na final de algum reality show, a expressar o quão hedionda foi a morte do menino Miguel. Mas não existe racismo no Brasil.

Entender a envergadura do racismo por aqui passa por descortinarmos a naturalização das múltiplas violências praticadas contra a população negra diariamente.

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