Leituras à conta gotas

Lendo Virginia Woolf à conta gotas, lembro demais da amiga Ana Adelaide Peixoto Tavares, grande especialista na autora inglesa. Ler à conta gotas não é meu ideal de tempo e “teto todo meu”. Mas é no momento o que eu posso, diante das leituras atravessadas pelos afazeres( o interfone e telefones que tocam, a panela de pressão zumbindo, as cachorras latindo, os pássaros pedindo água nessa primavera intensa…), diante da exigência de tantas outras leituras técnicas que o trabalho profissional exige. Ler Virgínia é mais visceral, ritual, é como seguir nutrindo as “asas nos pés” da menina maluquinha.

E como eu amo o “pau na moleira” que Woolf dá bem na cara da sociedade inglesa e em todas nós, para assim inteligentemente nos fazer despertas. Muitas de nós mulheres continuam afirmando a necessidade de um tempo, e um teto todo seu… É a fome de alma que nos move. Eu sinto saudades, bastante. Talvez das coisas que sinta mais ausentes, talvez seja o vazio mais intenso do qual silenciosamente uivo à sua procura, ainda o tempo e o teto das mulheres.

Talvez seja evidente para mim as perdas pelas alienação de meu próprio tempo. Quando falo em alienação é no sentido marxista mesmo da palavra. Embora saiba que as pessoas temem o autor por pura ignorância, porque para muita gente o escritor está no mesmo patamar do velho do saco, papa-figos… Já para os muitos sabidos o tal autor é pura e simplesmente uma verborragia que estaria mais próximo de um tipo ideal weberiano que diz muito mais sobre romantismo do que propriamente uma mudança mais radical nos estilos de vida.

Seria Marx romântico? Não sei, tenho lá minhas dúvidas. Das coisas que aprendi lendo alguns textos e comentadores, assistindo as aulas no doutorado, guardei o quão real é a tal da alienação. Antigamente havia o hábito de chamar as pessoas de alienadas, no tempo em que o debate existia num mundo sem tantas bolhas impermeáveis. De forma simples, bem simples mesmo, alienação é o ato ou efeito de alienar-(se); alheação, alheamento, alienamento. Em Marx, a alienação é um dos principais conceitos, e nos fala sobre a experiência histórica do alienamento do trabalho, um efeito do trabalhador não ter acesso aos bens que ele mesmo produz. De certo modo, numa sociedade mediada e conduzida pela inteligência artificial estamos retomando a um conceito clássico de alienação. Nem tanto como um dia foi em Marx, ampliado talvez, diante de um modelo de desenvolvimento conduzido por processamento de símbolos, de dados.

Eu sinto muitas saudades do Tempo matéria prima da existência. Claro que eu tenho, de modo ilusório, ou numa limitada concretude no presente, a cronologia em minhas mãos, não posso parecer fatalista, a vida ainda pulsa. Mas o fato é que a alienação do Tempo pelo Outro ( seja um modo de apropriação do trabalho, ou das forças vitais) é um território quase invisível onde são tratadas tantas lutas internamente. E quando eu sento para ler o que as mulheres escrevem eu entro no meu jardim mais secreto. E sinto, passo a sentir muito e intensamente. É necessário quase sempre parar e poder cantar sobre os próprios ossos, banhar-se com nossas próprias lágrimas, ver com os olhos da alma, permitir que o silêncio fique mais um pouco. É por um instante necessário voltar-se à própria casa que sou eu mesma. E quem na verdade ainda somos?

Certa vez escrevi lendo um precioso livro escrito por uma mulher, encontrei rascunhado no livro uma pergunta que ainda segue viva: o que fazer com o caminho da natureza selvagem? As mulheres que já leram esse livro entenderão essa pergunta. Porque essas palavras falam do processo psíquico da perda dos instintos (intuição). Todas e todos nós necessitamos de Tempo para nós mesmos.

A necessidade de Tempo pode nos falar muito sobre nossa pele, nossa corporeidade, e nossas formas de comunhão com nós mesmas, em primeiro plano, e com quem amamos, e com o que mais importa e são de fato o chão da nossa felicidade como um bem viver. Nos momentos da vida em que estive mais afastada do lar da minha alma foi quando o Tempo se tornou o grande hiato em mim mesma, pela alienação das minhas sublimes horas, meus minutos e segundos, tão vitais ao exercício da minha vida selvagem( intuitiva).

Vez por outra lá vou eu pegar esse novelo invisível, esse tal fio de Ariadne… pegar meu Tempo, mesmo que esteja bem enlinhado, repleto de nós, imprecisões. De certo eu sei que o tenho enquanto posso, bem firme em minhas mãos. E quando penso que não, lá estou eu a ir desenlinhando, tecendo as “lógicas” mais lesas que me iluminam e me fazem sentir o conforto de estar em meu próprio habitat, diante do meu próprio prazer de ser, restaurando a pele de foca, anteriormente roubada pela alienação do Tempo seja por quem e pelo que for.

Embora não veja mais as agulhas e os novelos de minha avó e o movimento de suas mãos tecendo com fluidez, consigo com meus próprios fios seguir bailando nos labirintos dessa existência, tecendo as estratégias de sobrevivência e desconstruindo todo e qualquer sistema de valores desprovidos de vida.

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