Anormal

Nunca tive uma visão sobre mim pautada no senso comum do que pensavam sobre ser: sertaneja, mulher, protestante, de raízes indígenas sem viver numa aldeia, jornalista, cientista… E durante um momento enquanto cozinhava uma das centenas de almoços que já fiz nesse isolamento social, pensando sobre a escrita dessa coluna, fiquei me questionando sobre meu senso de normalidade. Isso porque tendo passado já um certo tempo da pandemia, vez por outra ainda escuto esse clichê de “novo normal”, que parece mais bordão de telenovela.

Onde que esse Planeta, desde que se encheu de gente foi um lugar “normal”? É certo que a humanidade sempre tenta, e tenta achar um ponto de equilíbrio, de pacificação, de harmonia, de cultivar tantas virtudes que tornem capazes de conciliar inúmeras diferenças e lidar com a selvageria e barbárie que nos caracterizam enquanto espécie predatória. É preciso entender também que a própria idéia/conceito de normalidade (também mutável ao longo da história) serviu e serve a propósitos por vezes violentos de hierarquizar, violentar, maltratar, aprisionar, estigmatizar, desclassificar e aniquilar pessoas. Lembro sempre do livro reportagem da Daniela Arbex, “Holocausto Brasileiro”. Um dos grandes títulos desse país sobre encarceramento massivo e destruição de pessoas desse país movida por diferentes tipos de violência (inclusive patrimonial) praticada contra mulheres, crianças, pobres e população negra, gerações vitimadas pelo sistema social higienista e autoritário.

Eu não sei se quero ser “normal” para esse sistema social, para esse mundo. Definitivamente não sei mesmo. Num tempo em que a razão iluminista parece uma vela cuja chama se torna muito tênue, e a anomia social – tal qual Durkheim explica – se estampa nos lampejos dos delírios que aparecem constantemente em praça pública. Coisas das quais as pessoas teriam desprezo e vergonha, e choque. Aparecem hoje como memes, expressões de brutalidade, de horrores que pensávamos terem sido execrados com o horror da Segunda Guerra e dos holocaustos do tempo presente. A enxurrada de vídeos que circula pela internet dando visibilidade as desgraças produzidas pelas pessoas é verdadeiramente assustadora. Me faz pensar numa desestabilidade social em escala global e profunda, geradora de maníacos de toda espécie que tenta se instaurar como modelo, padrão societário que elege seus “iluminados”.

A Covid-19 deixou explicita a natureza da vida em sua finitude, lugar do tênue, frágil, da transitoriedade, a condição efêmera que a gente tenta diariamente significar na tentativa de fazer da existência uma experiência longínqua, nobre e extensa, esticada, para além do aqui e do Além. E a gente faz até poesia para lidar com a impotência humana de manter-se encravado eternamente aqui: “vida louca vida, vida breve. Já que eu não posso te levar, quero que você me leve. Vida louca vida, vida imensa. Ninguém vai nos perdoar, nosso crime não compensa”( Cazuza).

Me sinto anormal quando coloco a máscara no rosto para me proteger de uma pandemia, quando a maioria não está mesmo nem aí. Minha anormalidade se amplia quando observo minhas preferências, como gostar de MPB, diante do difusionismo de uma pulsão de morte e violência que se espalha através de tantos ritmos e letras que se escuta cotidianamente e se reproduz entre crianças e pessoas adultas. Minha anormalidade é de me sentir quase uma E.T. quando penso que seja mais importante saber notícias sobre o Amapá, cuja crise humanitária foi ao longo da semana ignorada em detrimento das eleições do que a imprensa repete, ainda hoje, como sendo a “maior democracia do mundo”(????). “Alô, alô, marciano, aqui quem fala é da Terra, para variar, estamos em guerra…”(Rita Lee/Roberto de Carvalho)

Não seria eu uma estranha por achar estapafúrdias as promessas dos guias eleitorais? Cada uma mais fora de contexto, de marcos legais, de inadequação às instâncias de um poder executivo ou legislativo. Promessas esdrúxulas, pobres e repetitivas, mascaradas com musiquinhas, bandeirinhas, modinhas, paleta de cores, figurino e maquiagem. Candidatos e candidatas que querem estar ON, quando a sociedade pouco acompanha e visualiza o subterrâneo das infovias das disputas de poder.

Sou tão anormal que quero tomar vacina para me prevenir da Covid-19. Venha ela de onde vier, porque só era o que faltava, pedigree (ideológico) para vacina, que precisa apenas ser eficiente e servir ao bem comum, a preservação da vida humana.

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