Fevereiro cinza

Eu nunca havia vivido um fevereiro tão estranho. Não sou carnavalesca, nunca fui, mesmo gostando das sonoridades. O fato é que os dias me parecem atualmente estranhos. Especialmente nesse segundo mês do ano. Sei que por um lado achava o Carnaval um excesso de alegria, contagiante, enebriante e por vezes uma grande ilusão. Pulsante, ali de mãos dadas, vida e morte, faces de uma mesma existência, se desdobrando em sobrevivência, fuga e celebração. Ver o Brasil sem Carnaval nas ruas foi uma experiência única. Mesmo que pudéssemos aglomerar, o que era passível de se comemorar diante de tantas mortes, já mais de 240 mil por aqui?

Só que era algo bem impossível ao país, o Carnaval passar em branco. E as redes sociais pareciam um lambe-lambe virtual, um álbum dos carnavais passando de olho em olho. As memórias festivas, afetivas, coloridas, tão intensas que quase escutávamos os sambas, os frevos, os batuques, afoxés… Apesar disso, há um silêncio no ar, ou um soar de tambores silenciosos, um lamento profundo que parece estar abafado como um soluço que marca o compasso da inquietude desses densos dias.

Há um hiato nesse fevereiro. E as nuvens cinzas foram chegando cada vez mais perto do chão. Céus nebulosos e termais. Fervor. Um calor quase sobrenatural senão fosse a certeza das calotas de gelo derretendo no ártico e as florestas em graveto pelos consecutivos incêndios criminosos.

O mormaço abafou ainda a angústia decorrente dos percalços da realidade. A cadência desse fevereiro sem carnaval no Brasil causou, mesmo que temporariamente, um vazio que não consigo semantizar. Fevereiro marcador da passagem do ano brasileiro, pausado, lento, passando de forma arrastada. Segui buscando os pequenos milagres das 24 horas em processo, a tessitura da vida debulhada, grão a grão. Quando a possibilidade de poder estar um pouquinho mais perto das pessoas que amamos torna-se uma verdadeira apoteose.

Parece que os dias estão entre a fronteira. Um entre lugar que pode estar minado pela pandemia, e ser por outro lado uma experiência de reabilitação da existência humana. A sensação é gritante, mesmo que silenciosa. Isso de fato vai passar? Hum… Enquanto isso a gente eleva os olhos para os montes, e se pergunta, de onde me virá o socorro? E interiormente sente que existe um Logos que cria. E essa Força de criação enuncia de certo modo uma Esperança.

É denso viver no Brasil, é um milagre sobreviver por aqui. As pessoas sempre se surpreendem com o lado “paradisíaco”, solar, festivo, enquanto a gente do lado de dentro vive o país como uma ambiguidade que nos assola constantemente. Porque as dores por aqui são escarradas o tempo todo em nossas caras. E a gente bem que tenta costurar e remendar os rasgos diários em ocasiões que tem se tornado tão corriqueiras, como ver uma criança sonolenta nos braços de uma pessoa idosa pedinte na porta de uma instituição bancária. É uma imagem cortante, avassaladora, constatar que os cães de um modo geral têm abrigo e muitas crianças têm relento.

Esse fevereiro não chega nem a ser um pós-guerra. Está parecendo mesmo um campo de batalha e seus desastrosos desdobramentos. Um fevereiro fantasmagórico em que a gente segue cantando para espantar os males. E cada vez mais torna-se urgente cantar, clamar, recitar poesia como quem ora suas preces diárias. Assim como faz a Maria Bethânia.

Sinto falta de dar as mãos como fazemos nas cirandas. Não abraçar alguém na chegada e na despedida ou não poder tocar alguém com todo o ser é uma sensação de ver sua alma um pouco arrastada para baixo. Porque o desejo mais urgente é poder agarrar as pessoas que amamos com todas as forças e silenciosamente parar para escutar o coração bater, sentir o cheiro, acariciar.

Possivelmente nunca esquecerei desse fevereiro opaco, cuja luminosidade vai se fazendo presente quando a gente vai catando no mais íntimo a infinita Graça, o milagre da inventividade dos sentidos nas 24horas, esses ciclos misteriosos. Assim a flor que brota, os pássaros a beber água, a inocência dos recém-nascidos, a escuta de uma voz amiga, um sabor compartilhado são expressões de reencontro com uma nascente que nos habita.

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