Meus capitães de areia

Recentemente voltei à Fundação Casa de Jorge Amado, e conheci à Casa do Rio Vermelho. Tem lugares que balançam demais com coisas que estão bem guardadinhas, nas caixinhas dentro das caixinhas. Já fazia tempo que queria falar dos meninos da praia que conheci em 1996, quando, por questão de sobrevivência e vontade, passei ao trabalhar, nas areias das praias de Tambaú e Cabo Branco. Era um grupo grande de meninos, de 11 a 17 anos, que vivia na rua, mais precisamente nessa cartografia da orla da Capital.

Como educadora social, meu papel era estar junto, e encaminhar os meninos ao acesso às políticas públicas (saúde, escola, esporte, lazer), enquanto os demais colegas buscavam reintegrar às famílias. Difícil era encontrar o fio tênue e longínquo que fazia a ponte entre eles e qualquer referência de lar. Eles inicialmente achavam que eu fosse de algum juizado. Quando viram que a desconfiança não fazia sentido, foram me deixando participar um pouco do cotidiano vivido nas areias, dia e noite, sem trégua. Eu meu Deus, era ingênua que fazia dó. Inocência de beradêra que ainda tá se ambientando na cidade grande, sem malícia.

Confiei neles, e vice-versa. Eram maltratados, estigmatizados, temidos, toda sorte de carência. Mas não romantizo. Eram ainda zombeteiros, malandros, quando tirados a terreiro agressivos, sabiam puxar um rosário de palavrões, podiam ser manipuladores, entendiam muito de política, malandragem, esperteza. Sabiam nadar. Não conto às vezes que fiquei sentada ao final do pier só vendo os meninos nadarem perto do mercado de peixes. Geralmente ao final da tarde.

Nunca, em qualquer circunstância, me fizeram mal algum. Só levei um tapa de leve na mão, do mais temido, porque ao levá-lo ao dentista, ele morrendo de medo, não quis ficar no posto de saúde. Ele de uma trajetória virada pelo avesso carregava um codinome pesado, infame. Mas sempre insisti em chamar pelo nome de batismo. Porque o nome era lindo. Ele era a encarnação da dor, abandono e revolta. Só que não era de todo um inocente.

Com os meninos eu aprendi o que nenhuma escola jamais iria me ensinar. Pela escuta deles fui entendendo que gente que “cuspia na Geni” durante o dia, ia viver sua lascívia e luxúria abusando sexualmente dos meninos à noite. Gente de “bem” e certamente frequentador de alguma igreja. Essas narrativas eram bem sutis, eram lançadas ao vento por meio de piadas, ironias, risos com a chegada de uma roupa nova, um tênis, o relato de um passeio noturno regado a shopping e lanche. A vida, o mundo, a leitura do mundo como afirmou o Paulo Freire, sempre foi a cartilha deles. Um mundo desnudo.

Com alguns deles conheci as periferias da Capital. Uma vez dois deles, um daqui, e um do interior de Pernambuco, me chamaram para visitar a casa da mãe, no bairro dos Novais. Saímos eu, e aqueles dois meninos saídos da infância, entre 11 e 12 anos, cortando a noite, dentro de um ônibus. Eles não falaram a razão da visita. Mas foi fácil descobrir. Ao encontrar no quartinho, uma mulher com três filhos pequenos, e um de amamentava, percebi que era a saudade da mãe e dos irmãos. Ele foi, sorriu, me apresentou a mulher, que constrangida, tentava explicar pra mim que não conseguia manter os filhos em casa. O mais velho, nunca voltara. Eu tímida, não sabia o que dizer, apenas escutar, jamais julgar. Era apenas estar lá para ver, sentir e me solidarizar com a situação de abandono geral. O menino deixou um pouco de dinheiro com a mãe, ficou um tempo, abraçou os irmãos, brincou, apresentou o amigo mirim.

Não ficou na casa. De volta à rua, lá no bairro mesmo quis pagar um lanche para mim numa bodega. Embora eu afirmasse não ser preciso, ele fez questão, e juntos, eu, ele e o amigo lanchamos por lá mesmo. Foi um dos momentos lindos da vida e dos mais duros. Alegres, rimos e depois voltamos a vida real. No ônibus desci no Mercado Central e os dois seguiram para Orla. Nunca me perguntei porque havia me levado junto. Nunca soube se havia voltado à casa. Ele era um menino lindo, parecia com a mãe. Pai? Não existia, talvez apenas no registro.

Anos depois o reencontrei já saindo da adolescência, mais magro, perdendo os dentes, na esquina de um grande supermercado, nos reconhecemos, nos demos um abraço afetuoso e alegre pelo reencontro. Dele e de alguns meninos eu guardo um frame da infância, numa foto 3×4, tirada para composição do time de futebol.

Eu vez por outra ao caminhar pela Orla cruzo aquele pier que só existe hoje na memória e imaginação, lembro deles ora nadando, ora jogando bola, ora tentando encontrar um lugar de retorno e inclusão.

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