Feminicídio estrutural

Eu vim tomar consciência da importância do Dia Internacional da Mulher, nos anos 1990, quando passei a enxergar as cruzes, cartazes e panfletos que as ativistas feministas deixavam visíveis nas ruas como uma forma de protesto diante do sangue derramado de tantas mulheres paraibanas que clamava por Justiça. Antes disso só achava meio brega aqueles anúncios publicitários em jornais com flores que glorificavam a figura feminina no oito de março em contraste com as razões históricas que elegeram aquele dia, uma data de agenda feminina/feminista pela afirmação de direitos políticos, sociais, sexuais e reprodutivos das mulheres no mundo.

Com todo respeito do mundo, não me venham com flores no Dia Internacional da Mulher, porque no resto do ano, a vida de grande parte das mulheres, as que conseguem estar vivas, é marcada por muita violência, seja ela simbólica, física, psicológica, patrimonial.

Ao ver as cruzes espalhadas pela Lagoa, na Praça dos Três Poderes, e, ao ler os nomes de Violeta Formiga, Márcia Barbosa, Cris, Brígida, Ariane Thaís e outras mulheres nos cartazes que reivindicavam Justiça, fui me dando conta do padrão cultural de matar mulheres que permeava o tecido social de onde eu vivia, e do Brasil, de forma avassaladora. Essas ações de visibilidade conseguiram desconstruir o acontecimento das mortes de mulheres como uma tragédia familiar, apenas, encerrada no âmbito da vida privada. Isso era a década de 1990, e estamos entrando em 2020 na segunda década do Século XXI.

Por isso não me conformo, nunca, com a noticiabilidade gerada sobre o extermínio de mulheres, pelo fato de serem mulheres, o que conhecemos hoje como feminicídio. E acho violenta e injustas as ofensas contra mulheres feministas, porque são elas, em grande parte, que diante das instituições e pessoas que assassinam mulheres, as que estão nas ruas não silenciando, não achando natural, acolhendo e sendo solidárias, apoiando as famílias que perdem suas mulheres. São estas mulheres por vezes difamadas socialmente, que estão atuando por transformações no sistema político e jurídico para que aconteçam mudanças.

É preciso que se compreenda urgentemente o delito do feminicídio, dada a sua gravidade e implicações (danos também para a economia no mundo). O termo feminicídio foi cunhado pela primeira vez pela antropóloga, pesquisadora e feminista mexicana Marcela Lagarde. Recentemente escutei uma conferência dela, em que enfatizava a centralidade do tema feminicídio diante da brutalidade no trato às mulheres que caracteriza muitos países. O Brasil ocupa o quinto lugar no mundo em número de feminicídios, num ranking de 83 países.

O Mapa da Violência de 2015 divulgou que entre 1980 e 2013, cerca de 106 mil mulheres foram assassinadas por sua condição de ser mulher. E, lamentavelmente, esse número não decresceu. A imprensa brasileira vem divulgando que o número de feminicídios aumentou em 2019.

Mesmo com a conquista de um marco legal, que é a Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), é preciso compreender que essa é uma causa das mulheres e dos homens.

Há avanços certamente em identificar agressores de mulheres e a definição legal de acesso às mulheres a uma vida livre de violências pela construção de Justiça, de marcos legais que são conquistas importantíssimas, a exemplo também da Lei Maria da Penha. Entretanto é preciso superar o desafio estrutural da violência contra as mulheres no cotidiano, que culmina com os atos de violência feminicida. Interpretar essa violência é um passo importante, e identificar no caldo cultural as canções, linguagens, piadas, insultos, mitos, narrativas, lendas, cordéis, músicas, danças, leis, ofensas, “brincadeirinhas”, gestos sutis e contundentes que vilipendiam as mulheres diariamente. É preciso muito mais que flores para mudar uma cultura de violência, porque precisamos de uma ética que promova igualdade jurídica, econômica, normativa, participativa, que gere uma democracia da convivência, e como afirma Lagarde, que garanta a integridade dos corpos, das mentes, dos afetos das mulheres e meninas. Uma ética que inclua a vida das mulheres.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *