Xenofobia

Recentemente ao ver telejornais tive conhecimento dos crimes em El Paso (EUA). Sempre tento fugir das narrativas espetacularizadas sobre homicídios por diferentes motivos. Talvez o principal seja a consciência do quanto elas se tornam lucrativas, e, o quanto representam uma face perversa dos diferentes processos de manipulação da informação. Tendo passado alguns dias do acontecimento, eu, lendo o El País, me deparo com uma reportagem que contava um pouco das histórias das vidas que foram perdidas de forma violenta. Quando leio estas notícias me sinto como se estivesse diante de um espelho refletindo apenas terror. Talvez seja o reflexo em perceber desaparecer os rastros de humanidade que acreditamos ter. Talvez estes fatos de horror desconstruam um pouco a ilusão das crenças que carrego que buscam aproximar divino-humano. Eu que de certa forma fui educada para ver a humanidade como expressão da criação Sagrada, ou tenha acreditado ainda no projeto Iluminista, no processo civilizatório, percebo, a cada gesto predatório massivo e midiatizado, sucumbir um pouco as crenças no humano. O crescimento do discurso supremacista e nazifascista no mundo contemporâneo provoca o extremo da xenofobia, a aniquilação do Outro, e o que aconteceu em El Paso é expressão disso. Para mim, infelizmente, passa longe de ser o ato de um indivíduo, e sim a expressão da cultura do ódio. A xenofobia tem um “modus operandi” e uma pedagogia sutil que se propaga no tempo histórico, perpassa as culturas e possui muitas camadas simbólicas onde se manifestam diferentes formas de violência.

Sobre o tema, o historiador Durval Muniz de Albuquerque Júnior traz uma contribuição pertinente no livro “Xenofobia: medo e rejeição ao estrangeiro” (Cortez Editora, 2016), onde faz um relato humanizado e competente, num texto que pontua aspectos para o entendimento deste fato social a partir de diferentes dimensões: histórica, antropológica, política e comunicacional.

A xenofobia significa medo, rejeição, aversão ao que é estrangeiro. A vivência da xenofobia se apresenta de diferentes maneiras. Não enxergar ou considerar a diversidade sócio-cultural-étnica-sexual no mundo pode ser a expressão de que meu Eu e meus valores (supremos e intocáveis) sejam um ponto de referência máxima no qual os Outros (estranhos, não normais) tenham que se subordinar. A xenofobia tem uma feição absolutista.

Do ponto de vista comunicacional, a mesma “humanidade” se comove muito pelas telas, quando enxerga a criança morta na praia de Bodrum, na Turquia; os acampamentos de refugiados, suas peregrinações; as cercas, os muros; os venezuelanos em Pacaraima; ao ver Óscar Alberto Martínez Ramírez e Angie Valeria Martínez Ávalos, pai e filha, refugiados de El Salvador que morreram afogados ao tentar atravessar o Rio Grande, na divisa do México com os Estados Unidos. A produção social destas imagens precisam circular conectada com a complexa teia do mundo real nos fazendo perceber que a ideia do mundo globalizado, que o viver “sem fronteitas” tem sido uma propaganda que movimenta uma parte da cadeia econômica, e que há muitas margens no curso deste rio. A hierarquização das “raças”, é uma delas, o próprio conceito de raça para classificação, inclusão de alguns e exclusão de muitos. Albuquerque Júnior discorre também sobre o processo histórico de surgimento dos Estados nacionais e a emergência do racismo. Recupera ainda o conceito de biopolítica, na medida em que reflete o poder do Estado moderno de gerir a vida da população, sua expressão como gestor dos corpos. A distinção entre os que pertencem e não pertencem à nação.

O discurso separatista, racista, xenófobo está ancorado na constante negação do conceito de humanidade do Outro. O diretor afro-americano, Spyke Lee, com o filme, “Inflitrados na Klan”, nos leva a compreender a biopolítica do mundo presente, que se constitui no Estado e para além dele.

Os processos de estigmatização pela linguagem, a gamificação do mundo, a cultura das armas, o nacionalismo e a marginalização cultural dos imigrantes são pontos que necessitam entrar no currículo das mídias e no cotidiano. Enquanto escrevo há 121 náufragos, resgatados pela Open Arms que seguem para Espanha depois de muitos apelos para pisar em solo. Segundo dados da entidade, já foram resgatados, entre setembro de 2015 a julho de 2019, 59 mil vidas. Pessoas que chegaram em terra firme, depois de deixarem para trás a viagem mais perigosa de suas vidas em mar aberto.

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