Bandolins

Nos anos 1980 eu era uma criança. Morava na rua Augusto dos Anjos. Não havia sido “domesticada” ainda, embora fosse tímida e educada com as pessoas da rua. Na verdade me sentia como Mogli, o menino lobo ou Moana, arquétipos das crianças nativas, selvagens. Andava de pé descalça, muitas vezes só de calcinha ou shortinho. Cabelo assanhado, que só dava trégua quando minha irmã mais velha fazia o penteado da princesa Leia Organa (Guerra nas Estrelas) para ir à escola. Adorava as árvores frondosas de minha rua, vítimas décadas depois do atentado do asfalto. Morria de medo da Igreja de Santo Antônio, especialmente à noite, pelas imagens horripilantes da cerâmica pintada com cenas de Jesus mutilado e paisagens do fim do mundo. Tinha medo também da “Mulher do Algodão”, do “Velho do Saco”, de Papangus e sentia pânico dos bois com seus chifres, que naquela época andavam livremente pela cidade.

Foi também nesta década que senti a puberdade chegar. Minha pré-adolescência chegou em em forma de canção. “Bandolins”. Eu que já vivia povoada por música em minha casa, ao escutar aquela letra na voz de José Alexandre e Oswaldo Montenegro fiquei imaginando uma mulher que enfrenta o mundo dançando e se “julgando amada ao som dos bandolins”. Meu corpo de menina estava se transformando, e por isso eu tinha que vestir blusa, o que era estranho para mim. Internamente eu tive que me adaptar com as roupas, com os seios, em calçar mais chinelas e sapatos (Ortopé). E Bandolins me ajudou a nunca esquecer de uma presença profunda dessa mulher esvoaçante e livre. Foi aí que comecei a conhecer o Oswaldo Montenegro. Se muitas amam o Chico Buarque, eu amo o Oswaldo Montenegro, sua poesia, sua musicalidade, o fato dele parecer ter um humor sarcástico e ser chato ao mesmo tempo. Por vezes tive vontade de deixar tudo e buscar fazer parte de sua trupe de teatro. Nunca pude, infelizmente.

Em 1995 tive a oportunidade de ir ao meu primeiro show. Minha mãe nunca soube que gastei a pequena mesada que me sustentava em João Pessoa, comprando o ingresso para o show e ainda um CD. “Aos filhos dos hippies” foi a primeira das muitas apresentações que pude ver dele e de sua rapaziada, ao lado da encantadora flautista Madalena Sales. Ao assistir sua última apresentação aqui na cidade, num show partilhado com Renato Teixeira, pude revisitar minha história afetiva com a trajetória do artista. Não fui tirar fotos, nem pedir autógrafo depois do show por timidez. Já havia pedido autógrafos em encartes de discos noutros momentos e nunca me senti muito à vontade.

Certa vez mangaram de mim por eu fazer parte do OMOL – Oswaldo Montenegro On Line. Eu nem liguei. Pois foi no advento da internet que pude estar mais próxima do cotidiano criativo do compositor. Depois vieram as redes sociais e a circulação ficou mais fluida. Pensei até que se fosse área de Literatura poderia até fazer pesquisa com base no acervo do artista, como tanta gente faz com o Chico Buarque. Mas não tinha a ver comigo. Fiquei com as canções vivendo livremente na minha imaginação. E sobre a experiência com as canções do Oswaldo Montegro teria material para escrever outro livro parecido com “As mil e uma noites”. Lamento, no entanto, ter enjoado durante a minha gravidez um CD excelente, “Entre uma balada e um blues”. Como antojo pode acontecer com as melhores pessoas do mundo, nessa fase não suportava escutar esse disco, junto com outro da Tetê Espíndola voltado à meditação e yoga. Mas os guardei com todo carinho. E quando quero escutar a música “Entre uma balada e um blues” eu boto para tocar o musical “Vale Encantado”.

Nesse último show estava tão introspectiva. Feliz. Silenciosa. Pensando sobre o quadro do Elifas Andreato que integrou o cenário do show, um menino negro, correndo com a bandeira do Brasil nas costas, com a imagem do infinito ao fundo, e as estrelas se desgrudando da bandeira e iluminando o caminho percorrido. Fiquei pensando no Betinho, irmão do Henfil, pensei que apesar de toda a lama, o Brasil tem um chão de estrelas. Fui de volta aos anos 1980 e depois regressei ao século XXI. Aí me volto às canções, e lembro de Condor, “quando voa o condor, com o céu por detrás, traz na asa um sonho, com o céu por detrás, voa condor, que a gente voa atrás, voa atrás de um sonho, com o céu por detrás”.

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