Torto Arado

Há alguns meses que vinha escutando Itamar Vieira Júnior, pelo fenômeno literário de Torto Arado (Todavia, 2019). Foi escuta do podcast da Revista Literária 451, depois entrevista no programa Roda Viva, e outras entrevistas do autor. Com curiosidade fui vendo os posts, inúmeros em redes sociais, com mídia espontânea ou patrocinada pela editora. Fiquei muito curiosa, mas não peguei o livro na ocasião do boom do lançamento e das premiações. Algum tempo depois fui lá numa livraria virtual e coloquei no carrinho a edição digital da publicação.

Eu primeiro gostei literalmente da voz de Itamar, do sorriso, da cumplicidade intelectual, da sabedoria na simplicidade e objetividade nas entrevistas. Eu fui, digamos assim, curiando o autor, observando suas posturas nesse mundo carente de pessoas que se situem para além dos clichês e de criação de narrativas como pseudo-acontecimentos. Mas não li seu livro imediatamente à aquisição. Porque eu leio vários livros ao mesmo tempo por força do trabalho e do gostar mesmo de ter um leque de leituras disponíveis. Só que essa semana chegou a vez de ler “Torto Arado”. E há livros que me causam algum ritual de iniciação, sei lá. E ensimesmada, fiquei horas a fio na caverna de uma rede, passeando pela paisagem que narra nossas ancestralidades.

Eu lendo fiquei pensando no espanto (no bom sentido) da crítica. E me perguntei como as pessoas andavam tão separadas do fio narrativo de suas próprias histórias, ou das histórias de vida de seu povo, das pessoas que habitam e fazem a história real do Brasil, ou de um tipo de figura humana cada vez mais distante de ser percebida, de ser respeitada, de ser enxergada como parte importante e significativa de nossa cultura. Quando falo de um livro prefiro observar mais os impactos que causa em mim, do que propriamente fazer apontamentos avaliativos. E por isso espero muito um dia que a juventude brasileira reencontre o Brasil, porque parece de certa maneira desconectada da trajetória dos povos originários, da lutas do povo negro, de um entendimento mínimo sobre a questão do acesso e direito à terra, que faz gerações inteiras peregrinar e travar grandes lutas pela sobrevivência.

A leitura do livro nos religa a uma história que nos pertence. Numa escrita que respeita as oralidades. A presença das personagens Bibiana, Belonísia, Salu, Donana, Zeca Chapéu Grande, Valério, Tobias, Miúda, diz ainda muito das lutas e crenças de nossas avós, mães, pais, avôs, vizinhos, comunidade. Ainda que muitos não estejam no campo. A linha do tempo narrativo do livro nos convida a voltar ou estar no bios, onde a existência das pessoas se processa com integrante e indissociável dos ciclos da natureza.

A espiritualidade é descrita no livro como face da construção da subjetividade das personagens. E gosto, humaniza o sagrado, e brinca muito ao romancear e evidenciar tipos ideais também. Mesmo que em momentos faça leve crítica a manipulação das crenças como manutenção das formas de opressão. Há muitas categorias analíticas em “Torto Arado”, que transitam no campo da interseccionalidade. Do que mais gosto mesmo é saber que o mundo tá povoado das “personagens” do livro, pelo menos penso que meu mundo está, e que as pessoas da vida real que espelham as personagens seguem lutando muito até hoje para afirmação do espaço de ser e estar no mundo com cidadania. E que a Terra, suas águas e frutos são a parte mais vital.

A fala e o silêncio estão encarnados em Bibiana e Belonísia, e elas vão se reposicionando o tempo inteiro na narrativa. E eu, lendo, fiquei fascinada pela potência do objeto sagrado e trágico, perfurocortante, que vai passando de mão e mão naquela geração de mulheres e escancarando a violência que elas e nós vamos buscando superar a cada tempo histórico e social.

Admiro ainda o olhar do autor para esses homens. Masculinidades escorregadias, por vezes encarceradas, e outrora dilaceradas. Acho que provoca um desencarceramento dos homens de certo modo, quando expõe seus fardos, e a apropriação de suas forças de trabalho e exploração. Lendo, lembrei tanto dos que tombaram na luta para não morrer de fome, como Margarida Maria Alves. E senti saudades de encontrar e abraçar as pessoas que amo que estejam no campo e nas cidades, celebrando a vida na terra, preservando as sementes e contando suas histórias, seus relatos, plantando e colhendo, lendo os ventos, as marés, seres encantados e encantadas que trazem em si uma gramática que para além da normatividade social, é complexa e numinosa.

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