Um atestado de sobrevivência

Muito recentemente vi uma reportagem sobre a superlotação nas praias e num dos principais centros comerciais do país. Pessoas e mais pessoas comprando mercadorias para abastecer suas lojas de um lado. E dezenas de pessoas sem máscaras curtindo o verão. As imagens poderiam ser expressões de uma certa sazonalidade na cobertura dos eventos natalinos, de férias e verão. Entretanto vistas diante de um contexto de pandemia se tornam o suprassumo de imagens horripilantes em virtude da complexidade e da gravidade dos acontecimentos no mundo, não apenas no Brasil.

Nos últimos anos, cada vez que sento para ver algum telejornal que verse sobre o Brasil sinto um desgosto profundo, em que pese algumas exceções, ao me deparar com narrativas de um cotidiano perverso. Sinto a necessidade de ir depurando o mal estar com gestos de criatividade, humor, pulsões de vida e assim vou refazendo as energias com pessoas que representam mais amor pela vida. São tentativas inclusive para compreender que o lugar onde vivo não se resume a ignorância, individualismo, fatalismo e tanto delírio. Claro que delírios no Século XXI não se espelham por aqui apenas.

Espero que todxs possamos sobreviver ao Natal pandêmico, é meu desejo maior, que sejamos sobreviventes. Penso na figura de Cristo, no início da narrativa dos Evangelhos, como uma criança refugiada sobrevivente que pôde crescer. Não desejo nenhum presente a mais. A vida me basta a cada instante. O fôlego que se apagou em tantas pessoas esse ano ainda está em mim. E respiro junto ao Universo, lado a lado à memória de todas as pessoas que partiram esse ano dizimadas não pelo vírus simplesmente, também pelo descaso e desprezo pela vida humana.

Toco a arrumação da casa interior para atravessar o Natal. Como em muitas famílias daqui e de tantos lugares do mundo, faltará alguém nessa mesa de partilha. Honestamente, eu não vejo razão nenhuma para euforia. Mesmo que essa data seja repleta de singularidade e simbolismos.

Nos últimos dias do ano busco me recuperar da asfixia de 2020. Tenho muito a agradecer, porque cada dia foi uma vitória, aquela alegria dos atletas ao cruzar a linha de chegada das maratonas. Assim, na travessia de cada dia, ia tendo a sensação de ser mais que vencedora.

Cada pessoa que ofertou um gesto de respeito e amor nesse ano representou para mim aquela figura atlética que atua no revesamento para que o grupo ganhe o maior prêmio, a condição de se estar vivo, não apenas dentro de um corpo. Esse tempo pandêmico deixou evidente, de uma forma cristalina, a vida moribunda dos hedonistas. Lamento que tenhamos nos tornados mais consumidores e muito menos cidadãos e cidadãs. Faz uma diferença imensa na vida de uma sociedade e nas respostas que ela precisa dar para assegurar sua sobrevivência.

Para lidar com as incompletudes desse Natal tento construir lugares muito internos, que signifiquem o milagre da descoberta de uma nascente de água. Das coisas boas de caminhar é poder encontrar uma nascente e imaginar o quanto de força ela traz, ela jorra, quantas cachoeiras, rios, e mares estão alinhados a partir de um broto de água que emana. Desse modo é possível seguir costurando as formas de vida possíveis.

Há muito que agradecer e viver, desejar, sonhar e amar. Esse ano meus cabelos cresceram muito, assim como as heras, se espalhando e vestindo mais meu corpo. Ao passo que ao perderem a cor, antes castanho escuro, foram matizando. E o tempo foi me fazendo ver as suas gradações dizendo adeus aos tons de marrom, aos tons de terra. E se tornaram mais prateados. Ao perceber esse rito de passagem ao ter mais tempo para olhar no espelho, fui dando conta das urgências da própria vida. E comecei a virar a ampulheta, (re)narrando os meus sonhos, para encontrar os que ao longo da jornada por ventura tenham se perdido. A pandemia me deu um grande tapa na cara sem que ninguém percebesse.

Revisitei as cartas, os blocos de notas, as fotografias, músicas, e até fui capaz de desenhar um mapa invisível para uma botija. Tantos tesouros que estavam escondidos foram se achando… traçando caminhos só de ida, conjugados no presente. E nosso passado pandêmico o que está se tornando? Talvez um atestado de sobrevivência.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *