Toda escuridão tem seu fim

Na manhã de segunda uma notícia saltou aos olhos. O oráculo Google, uma das grandes da tecnologia, ficou por instantes fora do ar. Aqui em casa foi motivo para umas boas risadas. Durou pouco. Foi como aquelas quedas de energia súbita que como num piscar de olhos a gente se depara com a luz. Esse “lapso”, “instante” me fez voltar a desejar a percepção do tempo mais analógica. Nesse mesmo dia, o mundo digital me permitiu ver algumas imagens do eclipse solar, visto em sua íntegra no sul do Chile e Argentina.

Quando criança escutava histórias no sertão sobre quando o pingo do meio dia se tornaria totalmente escuro, noite. Era uma imaginação de antepassados, era uma criatividade grande demais, era uma percepção escatológica do mundo. E esse anoitecer em plena luz do dia era anunciado como um fim de uma era para a humanidade. Eu sempre sonhei com dias que se transformariam em noite. E considero que os fenômenos astronômicos são uma caminhada bela à percepção do Infinito, tão grande que não consigo nominar direito. Mediada por computadores, observo a escuridão do dia, dos astros numa plena interseccionalidade. A emoção salta aos olhos.

Enquanto escrevo o eclipse acontece. A cosmovisão andina, indígena, aponta para essa experiência como sendo um bom sinal. E eu acredito. A Terra, o Sol, tudo, tudo num constante mover-se, em tempos diferentes, em suas também distintas atmosferas. Todo cambia… o pensar, o caminhar, as relações, os corpos…

Todas as experiências de eclipse solar que testemunhei até aqui foram parciais. No, entanto os eclipses da Lua foram totais e parciais. Assim fui acostumando a ficar horas e horas, absorta, atenta, imersa na atmosfera lunar. Embora como sertaneja percebo em mim uma mulher banhada de sol, e que convive com temperaturas entre 40 a 45 graus, que reverberam no azul-celeste mais limpo e intenso, sei que há um pertencimento à Lua. Seja pelos ciclos do corpo, seja pela percepção das águas e marés que são uma narrativa do cotidiano, ou pelo regime noturno do inconsciente, a Lua vai assim sendo uma presença, uma constante, uma cronologia particular.

Hoje quando sol e lua se intercalam unindo o longe e o perto, fico pensando que tudo se transforma. Que essa pandemia passará, está passando… e que nós a estamos atravessando. O Tempo é uma passagem profunda e cheia de mistérios não é mesmo? Assim como é nosso útero e como assim o são os oceanos e as constelações nos céus.

Assim sigo imaginando um renascimento, uma cura profunda não apenas de um vírus. Uma restauração bem mais ampla que possa emergir não apenas da autoproteção da carne, corpo. Embora tudo, tudo passe por nossos corpos. Penso na emergência de uma cosmovisão que se atenha ao mais amor por tudo, pela vida. Não só a vida de alguns, não só a vida do homo “sapiens”, a tudo mesmo que signifique vida, sem hierarquizações. Enquanto isso se processa no imaginário sigo perplexa com as nefastas fantasias circulantes, dotadas de um psiquismo centrado numa pulsão de morte, que se impulsiona na digitalização da vida, da natureza, dos corpos, pela negação do ser em sua integralidade.

O negacionismo é uma interface violenta da cadeia de morte que paira hoje na atmosfera da humanidade. Uma loucura pouco percebida como tal, uma ilusão de que nós indivíduos podemos controlar tudo. O negacionismo é uma estratégia discursiva de controle, de controle sobretudo do corpo por uma linguagem que chega às mentes, à lugares mais íntimos do ser. E tenta nos fazer acreditar que a vacina, que pode trazer condições de existir, represente ameaça e morte. Há uma subversão de ordem discursiva, há uma fuga agalopada de condições de racionalidade e sanidade.

O que se conjuga hoje não é apenas a luta pela sanidade do corpo e o que isso representa em sua plenitude. O que se manifesta hoje nas telas digitais e em praça pública (é, ainda existe a ágora), é um embate profundo entre um poder genocida que busca manter-se presente no cotidiano por meio de uma narrativa mítico e religiosa, centrada na destruição e autodestruição.

Voltando ao eclipse, toda escuridão tem seu fim.

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