Sol de Primavera

Eu tomei emprestado o título da música do Beto Guedes e Ronaldo Bastos. É uma canção antiga(1979), certamente muitos jovens não a conhecem ainda. Sobre quantas vezes cantei essa canção nem sei ao certo. Imagino que umas trocentas vezes, por ocasiões diversas. Sozinha, sorrindo ou chorando. Em algum momento abraçada à amiga Maria de Lourdes Soares Pereira. E talvez seja por isso que sempre lembre da força que tem essa música entoada por nossas vozes.

Nesse setembro eu tento mesmo perceber o que pode florescer. Primeiro porque adoooro flores. E porque sinto nessa conjuntura murchar algumas esperanças contidas ao longo dos anos. Daí cantar, e cantar, e cantar possa ser um bom antídoto, remédio, mantra, uma maneira de semear, no presente, dias que se encham do frescor da primavera. Sol de primavera é de uma poesia arrebatadora. Eu acho que traz a poesia de um conceito que a gente chama de utopia. Uma utopia que existe bem lá no íntimo da gente e que nos ajuda a compartilhar do que sonhamos com as pessoas de que gostamos, assim como que “semeando as canções no vento”.

Até aqui só estive numa apresentação musical do Beto Guedes, realizada na Praça do Caju, em João Pessoa. Já era um homem maduro, como todos da geração do Clube da Esquina. E eu, já nem era mais aquela adolescente que encontrou abrigo em suas canções. Músicas para todas as gerações, canções que permanecem ao longo do tempo. Sol de Primavera, Amor de Índio e Sal da Terra representam uma trilogia incrível. Vez por outra quando penso onde foi que me perdi percorro a linha de volta para sair do labirinto, e essas canções são parte do tear, do tecer, do perceber as tramas mais subjetivas.

Percebo um pouco como a gente segue tentando se recriar nesse período de Covid-19 e de que maneira as canções contribuem bastante para fortalecer nossa imunidade. Já que assusta muito o volume do trabalho, a manutenção das mesmas exigências laborais e de estudo. O trabalho, como um “replantar do pão do cada dia” está num limiar complexo, seja por sua ausência, ou pelo seu excesso. Uma sociedade tão esgotada, que resiste à necessidade de pausa que a delicadeza e a brevidade da vida exigem. Silenciosamente vamos percebendo as panes. O fruto do trabalho deixou de ser sagrado, a compulsão pelo consumo foi paulatinamente ocupando os lugares do que seja divino em nós.

Eu tenho muito medo dos suicídios, porque os vejo como atitudes não restritas a vida do indivíduo, ou na esfera privada. Numa sociedade cujos valores e “organicidade” vai sufocando a vida das pessoas, de uma forma por vezes tão sutil, as pessoas vão sendo corroídas em sua vontade, seu desejo de viver. Há uma tendência que vem, depois de uma notícia de suicídio, das pessoas se questionarem sobre o que estava ocorrendo na vida daquela pessoa. Pouco perguntamos ou questionamos o que está acontecendo no social, que pode contribuir, ou ser fator decisivo(definitivo) para arrastar alguém para uma finitude violenta.

Há momentos na vida em que há dores tão profundas que a gente não tem sequer a coragem de dar qualquer pista de que elas existam, seja por medo, por vergonha, por não entender o que se passa, por não querer parecer uma pessoa triste, infeliz ou sem sucesso (num mundo pleno e perfeito da felicidade com os filtros de photoshop). E a complexidade talvez resida no fato de que essas dores estejam no todo, e não apenas numa única pessoa. Embora, certamente, elas atravessem cada sujeito deixando suas marcas. Não é fácil lidar com os desafios que cada tempo exige, e quanto mais fragmentada e individualista a sociedade, com as rupturas dos laços afetivos e comunitários ainda mais frágeis e vulneráveis nos tornamos. “O que será de nós se estivermos cansados da verdade, do amor”, pergunta Beto Guedes na canção Contos da Lua Vaga.

Não é preciso driblar a tristeza, talvez compreender de onde vem, acolher sua transitoriedade e buscar uma energia vital para que não se instale, se enraizando no Ser. A fé, o afeto, o cuidado, o autocuidado, a solidariedade, o respeito, a compreensão mútua, a escuta, o abraço, o acarinhar, uma palavra de paz, e tantos pequenos e fabulosos gestos talvez nos ajudem a curar as enfermidades para além das pandemias. “Esperança viva que a mão alcança, vem com teu passo firme, e rosto de criança, a maldade já vimos demais…” (Beto Guedes e Ronaldo Bastos)

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