A industrialização da fome

Comecei a semana escutando um podcast, Café da Manhã, em que a escritora e cozinheira Rita Lobo, entrevistada, falava da importância do Guia Alimentar para População Brasileira. É que recentemente setores da indústria alimentícia no País querem revistar a norma técnica, que de tão qualificada norteou notas técnicas de países como Canadá. O Guia é uma das medidas importantes para preservação da segurança alimentar e nutricional brasileira. Que no momento se fragiliza pela pauperização, pelo crescimento da fome no Brasil, como também pela pobreza nutricional a que são submetidos muitos homens e mulheres, em qualquer fase da vida.

A maior parte das pessoas hoje come muito mal. Mesmo aquelas que têm poder aquisitivo para compra de alimentos. A precariedade nutricional pode acontecer por não se poder ou querer comprar alimentos naturais; por não ter tempo de cozinhar em sua casa, ou poder fazer uma refeição adequada em seu ambiente de trabalho, ou ainda por uma influência cultural perversa em que os alimentos industrializados foram, pela força do marketing, padronizando o gosto e a cultura alimentar. Acredito que uma das coisas mais importantes que aprendi na vida foi cozinhar meu próprio alimento, e observar desde bem cedo o que se comia na casa de minha avó, e registrar em mim tudo que se comia na casa de minha mãe. Nesse período que aprendi a cozinhar, entre 12 e 13 anos, fui aprendendo a escolher alimentos na feira. E sigo aprendendo até hoje.

Sou sertaneja e carrego toda uma expertise mesmo do que se come por lá, e quando troco sabores com sertanejos como Chico Ferreira (que faz uma das melhores rabadas e mungunzá salgado que conheço) fico para lá de feliz. Por morar no litoral fui aprendendo muito com os pescadores de João Pessoa e amigos e amigas indígenas lá de Marcação e da Aldeia Camurupim me ensinaram muito sobre peixes e frutos do mar (patola de caranguejo, aratu de pedra, polvo, ostra, e por aí vai).

Amo aprender receitas novas, e sempre troquei muito com pessoas mais próximas, mais recentemente com as amigas do grupo Coisa de Mulher, ou em viagens. Esse ano minha proeza foi fazer pastel de choclo e compartilhar com pessoas próximas, e também tortillas argentinas. Certa vez num lançamento do livro do Rodrigo Hilbert conversamos sobre o hábito de comer tutano. Minha avó sempre gostou de comer, e adorei ter encontrado no livro dele uma receita de tutano. Dona Tó sempre se manteve no peso, nunca teve colesterol alto, nem artrite, nem artrose. Viveu 94 anos. E eu sempre penso que tudo se deve também a alimentação simples, muitos simples, e natural, durante toda a vida dela. Penso que seja um crime contra um povo atacar o direito à alimentação e nutrição saudáveis para favorecer a indústria de “comida” ultra processada, que é tudo, menos alimento.

Quado estava na adolescência, nos anos 1980, que vi chegar no sertão a comida industrializada, que era bem presente na merenda escolar. Minha escola no ensino básico fornecia comida natural com ajuda dos pais, mas no fundamental e médio era dose a merenda escolar no saquinho. Mais recentemente no Brasil do início do século XXI as escolas puderam ter algo importante que foi o Programa de Aquisição de Alimentos, porque permitia uma alimentação com segurança nutricional, e fortalecia produção dos agricultores e agricultoras familiares localmente. Assim crianças e adolescentes não se alimentavam de farelo, ou pocaria qualquer.

Vez por outra eu inventario as receitas de minha família, porque acredito que seja uma riqueza cultural imensa, de uma sabedoria, de uma afetividade. Fiquei emocionada e feliz quando meu pai me repassou a receita de lambedô que minha avó ensinou para ele, e ele nos ensinou. Com ele aprendi também a fazer o bolo mole (bolo de leite), cabeça de galo, feijão, bode. Lembro certa vez o ritual que foi fazer uma buchada de bode (perdão vegan@s). Passamos uma manhã inteira no sítio, seguindo as etapas do processo, da maneira mais tradicional, com a ajuda de dona Dao, que na maior engenhosidade me ensinava a virar tripa de bode com graveto ( ambas sentadas de cócoras) e higienizar tudo depois, com fogo de brasa, limão e fervura. Me dizia os temperos, o que ia e não ia na receita, como fazer as bolsas recheadas. E toda vez que eu vejo uma buchada de bode, lembro da solenidade daquele dia, em que os segredos foram revelados e nos sentamos para celebrar à mesa.

Assim eu sigo firme na convicção de que seja preciso defender com unhas e dentes nosso patrimônio alimentar. Porque temos exemplos concretos de que a comida industrializada, superprocessadora vem destruindo a saúde das pessoas e onerando os sistemas de saúde em vários lugares do mundo.

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