Antigas canções

Nessa quarentena tá muito difícil não poder abraçar as pessoas que amo. Algumas delas inclusive que jamais voltarei a reencontrar. Acordei de uma noite curta em que tive dificuldades em entrar nela suavemente e dormir. Estava angustiada. Antes, bem cedo, havia passado na porta de duas pessoas muito amadas, feliz por vê-las, mas sem poder abraçar. Uma delas, a Vitória Lima, fazendo aniversário. Passei na porta apenas para ver seu rosto da janela e poder expressar, do jeito que era possível naquele momento, o quanto é preciosa, e quão importante para nós é poder celebrar a vida de quem a gente ama.

Ao voltar para casa feliz por ver amigos de sorrisos incomparáveis e muita ternura, pude sorrir muito com uma vontade doida, repentina de comer doce. Logo eu que não sou chegada a doce, que nem compro doces no dia a dia ou faço sobremesas. Só que fui possuída por uma vontade enlouquecida em busca de qualquer comida que me desse a ilusão de mergulhar num oceano de açúcar. E me desdobrei em risos bestas, bobos, lesos, por me sentir “vítima” de minhas próprias armadilhas.

O que me restou foi um copo de leite com duas colheres de chocolate em pó vencido. Como não rir ao olhar depois que o pote era de 2019. Aqui todos riram do desejo repentino e incontrolável. A bem da verdade às vezes a gente quer fugir do que aponta o inconsciente: a alma agitada por não poder abraçar os amigos, talvez pela contenção de choro represando diante da cena caótica que é essa condição pandêmica.

Tentei dormir em vão, até decidir sair da cama e me entregar a rede, a visão das estrelas na noite clara de lua cheia, onde podia ver a mata atlântica noturna, e observar os desenhos e movimentos das nuvens, ouvir, no pequeno hiato da poluição sonora das motos, as ondas do mar. Lembrei do Caymmi assobiando, “vamos chamar o vento”. E ao poder escutar outros sons que o barulho diário torna impronunciável, fui percebendo o tamanho da tristeza, ainda que temporária, existia pela consciência desse luto persistente que paira no ar, pelo contexto pandêmico. Pela impossibilidade de abraçar quem se ama e chorar tudo isso que está passando.

E depois de chorar poder cirandar, cirandar, e cantar, cantar sobre o “vale de ossos secos”. Cantar como La loba, que na narrativa psicanalítica de Clarice Pinkola Estés expressa o sentido de permanência da alma feminina, sua intuição. Como muitas coisas estão desaparecendo nesse momento e, se perdendo, em definitivo, intimamente existe uma necessidade de cantar sobre os ossos.

Não por acaso ao chegar ao dia seguinte, na rede, despertada pelo canto dos pássaros e o sol. Quando enfim ligo a TV para as notícias, dou de cara com Milton Nascimento, Xênia e Liniker, e escuto Coração de Estudante. Nada a fazer senão parar, continuar respirando, deixar as lágrimas darem meu primeiro banho, respirar fundo, e seguir cantando, “quero falar de uma coisa/ advinha onde ela anda/ deve estar dentro do peito/ ou caminha pelo ar/ pode estar aqui do lado/ bem mais perto que pensamos/ a folha da juventude é o nome certo desse amor. Já podaram seus momentos/ desviaram seu destino/ seu sorriso de menino/ quantas vezes se escondeu/ Mas renova-se a esperança/nova aurora a cada dia/ e há que se cuidar do broto/pra que a vida nos dê flor e fruto”.

As músicas da quarentena têm sido um respirador aparentemente invisível que nos ajuda a recobrar o fôlego diário da vida: o soul, os cânticos espirituais, a poesia da música popular brasileira, os instrumentistas com seus clarinetes, pianos, fagotes, trompetes, contrabaixos, rabecas, violinos, batuques, agogôs… As vozes ecoando, alguém cantando… sozinho ou num dueto. Sempre guardo num arquivo chamado Músicas da Quarentena as canções que vão circulando pelos grupos ou por alguém amado que me manda uma canção. Eu recebo canções como sementes de árvores, sentindo um compromisso de cultivar para ver brotar mais adiante.

Eu fico mesmo imaginando ao organizar essas canções, como quem grava uma fita K7, poder olhar para elas e ver como essa playlist se configurou. De que ou de quem nos falam essas canções. Nessa trilha sonora do mundo pandêmico eu descobri tanta gente linda e potente, suave e poética. E também peguei um ticket para fazer uma viagem de volta reencontrando antigas canções em novas vozes e arranjos …

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