Ninguém nos tira a dança

Pego o título acima de uma expressão emprestada de uma fala de Miguel Rubio Zapata que conheci recentemente durante uma conversa após o espetáculo Clã_Destino, do grupo teatral Clowns de Shakespeare. Pois bem, ao saber da tal viagem, ressalto “cênica-cibernética”, pelas páginas de cultura da Revista Carta Capital, lá fui eu, catucar e buscar meu passaporte para embarcar. Procurei não saber do que se tratava, exceto pela certeza de que a trajetória do Clowns de Shakespeare sempre representou muita seriedade na pesquisa teatral e no compromisso com o fazer artístico no Brasil, diante de desafios tão duros, especialmente nos últimos anos, quando a necropolítica tenta, como é de seu costume, destruir as artes, artistas e expressões culturais.

Fui checando as informações que me chegavam para poder fazer parte, estar junto, criar; participar, imaginar e transmutar isolamento social em imersão, e ir muito, muito mais além da telepresença, ou da comunicabilidade programada num universo marcado por opacidade de dados. Quando me deram o acesso ao passaporte de Clã_Destinos eu tinha o desejo de embarcar, movida pela necessidade de saciar a fome de alma, que só em alguns espaços sagrados de criatividade podem nutrir.

Não posso falar tudo aqui. Apenas compartilhar que o espetáculo nos envolve como protagonistas da narrativa que está sendo construída, é um work in progress no qual há uma condição de integralidade dos sujeitos na cena, mesmo considerando todos os riscos que envolve um processo que dependa das infovias. Queria ressaltar aspectos que me tocaram, foram muitos, entre eles observar que, embora não estivéssemos num espaço tradicional do teatro, enquanto espaço, havia um tempo e lugar dos corpos cênicos. Estávamos nós ali enquanto narrativa e também comunidade interpretante.

As idéias num processo de construção enquanto um novo programa narrativo, uma linguagem decolonizadora rompendo linhas abismais de exclusão cultural e social, históricas. Uma cartografia tecida ali trazendo de volta o mapa real da América Latina. Se a internet por vezes pode significar uma prisão sem muros, a ciberdramaturgia do Clowns de Shakespeare me mostrou uma subversão possível e necessária tecida por uma consciência de mundo, de lugar, repletas de perguntas, sem respostas óbvias, entretanto com a constituição de chaves que permitem abrir portas importantes da razão e potência criativa como partes da mesma experiência.

As metáforas são perfeitamente compreensíveis dentro da experimentação, não são óbvias, nem impositivas. Cada participante da experiência “cênica-cibernética” é ser livre para vivenciar seu roteiro de viagem como quiser. Diante de uma realidade já distópica, que a pandemia só fez acentuar ainda mais, Clã_Destino não é um retorno a uma felicidade que existia, é um ato de Esperança pautada na capacidade das histórias verdadeiras e justas arrebentarem grilhões. Acredito que a internet pode ocupar lugar no mundo diferente, na medida em que nós humanos não nos deixemos submergir, nos encarcerar entorpecidos pelos cliques e passagens das janelas que não nos vinculam a nada, a nenhum lugar, a ninguém.

Vivi essa experiência cênica bem irmanada, porque mesmo mediados por tecnologias autômatas e binárias, a capacidade humanizadora, e tudo que o teatro representa na história da humanidade, foi capaz de me conduzir a partir de emoções profundas e necessárias que precisava reencontrar. E foi na empatia dos personagens que me acolheram também enquanto atriz que pude chegar a caminhos que precisava.

Acredito que cada grupo que participa de Clã_Destino tem a oportunidade de enxergar questões na exterioridade e interioridade de suas próprias máscaras. E como não afirmar o Teatro como representação da vida humana…

Clowns de Shakespeare em Clã_Destino vai tecendo uma linha do Tempo extraordinária, em que a experiência de encenar é o tempo-lugar mais livre que possa existir, porque são corpos que estão inteiros em sua potência criativa, enfrentando os desafios de um mundo marcado em certo momento por ruínas e dores, buscando reconstruir a pulsão de Vida e acertando na afirmação de que “ninguém nos tira a dança”.

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