Palavras não alcançam

Enquanto escrevo penso que estou numa jornada. São muitas as emoções voando aqui dentro. Sinto uma revolta imensa com o comportamento facínora dos vermes, que equacionam as vidas humanas monetariamente. Violam tudo e todos. Na maior de todas as crises humanitárias até aqui, somente a malignidade elevada ao extremo poderia produzir tamanha atrocidade genocida. Mas respiro fundo, buscando não me conduzir ao ódio, apenas a consciência de que tudo está se transformando enquanto escrevo.

No meio a angústia desses dias, fui tomada, enquanto estava sentada na escrivaninha, que fica ao lado dos livros de cabeceira, em meu quarto, vizinha à minha janela, por um lindo balé de nuvens. Sem sinfonia alguma, as nuvens bailavam sendo levadas e trazidas pelo vento. A mescla azul e branco dançante, rodopiante fisgou meu olhar. Fiquei absolutamente envolvida por esse movimento que arrebatava, e me fazia pensar e sentir que a Terra inteira, como as nuvens estavam se movendo, saindo do lugar, se transformando. Voltei um pouco mais a minha consciência ecofeminista, e pude raciocinar que a enfermidade não dizia respeito apenas às pessoas humanas, estava no Todo, que precisava de cura, urgente. Uma restauração que não perpassa apenas por uma vacina, um remédio. Uma cura que passa pela revisão do modo de existir, de forma planetária.

Há tanto tempo que a gente ouve falar sobre como nós mesmos causamos a destruição do lugar em que vivemos. De repente tudo chega bem vivo em nossa cara, casa, lugar, pertencimento. Quando fiquei prestando mais atenção ao movimento das nuvens no céu essa semana, tive uma pequena esperança de que não estávamos agindo só, que havia uma Força ainda maior se movendo. Quero essa Força se movendo também por dentro de mim, me conduzindo há um lugar profundo, me conduzindo a uma outra perspectiva de vida, de cotidiano. Quero de volta a espiritualidade por vezes roubada por situações que me fizeram perder o sentido para crer.

Quero fugir um pouco das telas de Narciso, repetitivas, que parecem hoje não distração, e sim saturação. Se por um lado a tecnologia nos aproxima, por outro nos imobiliza um pouco. Nessa experiência vivida no casulo, fugindo da peste, na quarentena, me assola uma impaciência com as telas dos celulares, por não conseguir me fixar em lugar algum. A necessidade mesmo é de correr, correr bem muito, seja em direção ao vento, ao mar, aos braços das pessoas amadas, correr em direção a quem mais necessita e para os quais não existem as casas sementes.

Nesses dias de aparente vazio eu sinto uma vontade enorme de sair dançando pelas ruas silenciosas, cantar, acalentar as dores. O que falar aos amigos italianos que vivem o luto por suas perdas? Eu disse a eles que lamentava profundamente. Em casa, fiz minhas preces, escutei Ennio Morricone, especificamente a trilha do filme “A Missão”. Quando preciso orar e não tenho nenhuma palavra, eu busco uma música, porque minha visão de eternidade inclui muita música, dança, reencontro com pessoas amadas e uma infinitude de galáxias, estrelas. Um oboé, um clarinete, um trompete, uma flauta, uma percussão, instrumentos musicais falando de coisas que as palavras não alcançam.

Nesse tempo em que volto aos espaços de maior interioridade lembrei demais de minha ancestralidade, e de como ao seu tempo e de seu modo cada uma das pessoas mais queridas foi lidando com as adversidades de sua linha da vida. Isso me animou um pouco, e trouxe de certo modo a Esperança necessária para me agarrar ao fio invisível que nos faz respirar.

Uma terra asfixiada, o vírus nos fala da metáfora das asfixias, espiritual, econômica, social, existencial e tecnológica. Igreja ou religião, sistema econômico nenhuma vai dar conta ou estar acima do mais essencial que é a vida. E chega mesmo a ser repugnante a postura dos falsos profetas, na busca pela constante capitalização. Perversos e insanos, fadados a desempenhar o papel de vermes.

Voltando ao movimento das nuvens, retomo à esperança do fôlego, do Sopro de Vida que nos trouxe, indiscriminadamente, até aqui, até esse ponto de mutação.

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