Pacarrete

Certa vez eu estava caminhando pelo centro da cidade, próximo à rua General Osório, quando vi que vinha em minha direção Marcélia Cartaxo. Me senti tão emocionada que tive vontade de chorar. Eu morava em João Pessoa há anos, mas nossos caminhos não haviam se cruzado. Só que naquele entardecer estava diante de mim uma mulher sertaneja, como eu, que antes de mim, havia desafiado um contexto histórico condicionador à vida das mulheres, e optando pela arte, nunca desistiu de estar nos palcos, nas telas de cinema e na tv. Naquele momento eu deixei minha timidez de lado. Fui falar com ela, pedi permissão para poder dar um abraço, e expressar o quanto sua presença na vida e na arte significavam tanto e nutriam emoção e esperança.

Em meados dos anos 1990 havia assistido nas aulas de cinema do Departamento de Comunicação, Marcélia Cartaxo e Sóia Lira, atuando em Árvore de Marcação (Dir. Jussara Queiroz, 1994). Antes disso havia assistido A Hora da Estrela. Penso que muitas de nós nos identificamos bastante com Macabéa. Quando eu olho para o livro de Clarice Lispector, A Hora da Estrela e para sua adaptação ao cinema, eu vejo em Macabéa a Clarice Lispector, inteira, entregue, voltando a um lugar de memória na construção desta mulher nordestina que Clarice também foi. Uma personagem construída num momento de finitude, de terminalidade provocada por um câncer. Uma mulher se transformando em estrela, infinita, integrada ao Eterno. Eu percebo e reconheço ainda a gradeza de Marcélia, ao construir para além de si mesma a personagem Macabéa. E por isso sendo reconhecida internacionalmente.

Recentemente a atriz está em cartaz em Pacarrete (Dir.Allan Deberton). Protagonista, ela representa uma das personagens mais bem construídas da filmografia recente do cinema brasileiro. Contracenando com Sóia Lira e Zezita Matos, as três atrizes paraibanas mostram uma cumplicidade de uma vida inteira que se desdobra na poética de cada momento em que contracenam juntas. É uma poética feminina, é uma poética do olhar das mulheres do sertão, do interior. Nessa poética silêncio e grito estão no mesmo ato.

Pacarrete é uma bailarina aposentada, que deixou a cidade grande e voltou para sua casa, em Russas (Ceará), para cuidar da irmã(Zezita Matos), junto com Maria (Sóia Lira). Sua cabeça, como afirma, é cheia de palavras, e por isso Pacarrete grita, para não ficar louca. Ela grita contra o embrutecimento do mundo. Em seu microcosmo ela dança lindamente, cada gesto em cena é uma ode pela Vida. Pacarrete é incompreendida na cidade hibridizada. Um município que perde a si mesmo por atrofiar suas raízes culturais.

Pacarrete é acolhida por sua irmã Chiquinha, Maria e seu cachorro. É ainda no tratamento igualitário e na dignidade de Miguel que encontra um espaço de diálogo e compreensão. Miguel, vivido pelo ator João Miguel, nos ensina em Pacarrete uma expressão de masculinidade que necessita ser cultivada cotidianamente.

Eu, enquanto assistia, ficava pensando no processo vivido para “dar à luz” à Pacarrete. E fui entendendo, a partir da própria fala da personagem, que vivia por amor a arte, o quanto de entrega da atriz, dos jovens roteiristas, do diretor e equipe eram um ato de resistência em defesa da arte, reafirmando o tempo inteiro que “um artista nunca deve deixar o palco”.

No filme, Pacarrete diz que “é forte como um mandacaru”. Acredito plenamente nisso. A personagem é forte, e lida cotidianamente com a brutalidade de um simbolismo que busca silenciar as artes. Ela é uma mulher extraordinária, assim como é a mulher que soprou o fôlego de vida à Pacarrete. Marcélia Cartaxo continua sendo autêntica ao encarar o desafio de suas personagens, e ao mesmo tempo surpreendente, ao redefinir a escrita delas em seu corpo, sua voz, gestualidade criadora de tantas possibilidades.

Se eu me emocionei em Pacarrete? Sai com vontade de mostrar ao mundo inteiro, em cada sala de cinema, em cada casa deste país do futebol, nas praças pelos sertões a dentro. Conheço muitas que carregam uma Pacarrete dentro de si. Algumas gritam o que está em sua cabeça, outras, infelizmente, não transcendem o silenciamento. E há outras que no silêncio dão nó em pingo d’água e seguem bailando.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *