Quando ser doido é a regra

O meu primeiro contato com a loucura foi na infância. Ao perceber na casa ao lado, uma senhora negra, miúda, aos uivos. Minha vizinha, dona Inácia não gritava, ela uivava. Não sei se de dor, de fome, de abandono. As atitudes eram desesperadas e por vezes escutava a sinfonia da quebradeira. Como era criança, não entedia direito. Tão pouco esqueci da casa ao lado, desta mulher, e da cena de que tentaram inutilmente me proteger, sempre me colocando para dentro de casa e fechando as portas.

Depois que cresci um pouco mais perguntei os porquês, e me disseram que era por causa da violência que ela sofria, e de que como no álcool tentava se refugiar. Anos mais à frente, estudando, compreendi que minha vizinha havia sido enlouquecida pelas situações de vulnerabilidade social, e por nunca ter conseguido apoio e condições para sair do ciclo da violência doméstica.

Certa vez ao voltar em minha cidade natal decidi visitar uma Fundação Cultural, a FUNES, a Fundação Ernani Satyro. Para minha surpresa, encontrei uma galeria de figuras folclóricas da cidade. Algumas havia conhecido na infância, porque como diz no interior eram “doidos varridos”, que transitavam pelas ruas da cidade, de ponta a ponta. Outros, totais desconhecidos. Mas ficou claro para mim, que se situaram no lugar da margem. Como não era mais criança, ao percorrer um pouco da memória destes homens e mulheres emblemáticos para o imaginário da cidade, pude identificar alguns elementos de sua condição subalterna e estigmatizada. Nunca me diverti com a loucura, nunca zombei dela, e fui ensinada em casa a respeitar a condição humana, tênue, muito tênue.

Lembro claramente de Gentil, por sua simplicidade, suas caretas. Gostava de encontrar Risadinha por carregar como enigma um sorriso permanente. Tinha ainda o irmão de uma colega de classe, que se tornava agressivo, quando na rua, alguém gritava de forma perversa: quanto é 3×8? Causando sua ira. Sentia ali o quanto era sofrido e desafiador para a família lidar com o adoecimento mental. As ruas em minha cidade eram, naquele tempo, a morada, de grande parte das pessoas que adoeciam mentalmente. Era o relento, o abandono, mas talvez tenham sido também a liberdade, a negação de um sistema de opressão, uma forma particular de existência. Foi assim que conheci “doido” Assis, correndo pelado pelas ladeiras abaixo, e as pessoas fechando as janelas de suas casas, e colocando as crianças para dentro de suas casas.

Lembro ainda claramente da mulher baixinha, pequena, magrinha, com roupas que pareciam o personagem do Antoine de Saint-Exupery, o Pequeno Príncipe. Ela era chamada de Maria Homem, por se travestir. Era bem séria, andava sempre carregando sacolas, com distintivos pregados na parte de cima de seu vestuário. A única coisa que soube ao seu respeito é que havia morado na Avenida Padre Anchieta. Quando a gente ousava desafiar um menino na escola e não levar surra, ou não aceitar um papel naturalizado e atribuído ao sexo feminino como constituinte de sua nossa “essência de mulher”, apelidavam de Maria Homem. Então foi assim que ela passou a ser vista na imaginação como quase uma astronauta, naquele território de luz estourada.

Quando eu olho para o passado e lembro destas pessoas e observo o presente, percebo o quanto me parecem pessoas sanas. Quando recentemente escuto determinadas declarações de pessoas públicas, fico refletindo se tudo perdeu o prumo, o senso, se de forma bem ampla as pessoas estão vivendo sob o signo da destruição e/ou auto-destruição. A perversidade gera muita loucura, a sociedade do controle, do absolutismo, dos paradigmas securitários, da constante vigilância, a dependência tecnológica redefinindo os espaços do ser, do sentir, da cognição. O que é a normalidade?

Na última sexta-feira, 29, na dita Black Friday, observei coisas insanas e torpes. Uma barbárie movida pela objetificação humana, o ser se esvaindo. As identidades monetarizadas num mundo em crise econômica. E como rentabilizar o caos? Simbolismos, fetiches que geram aparentes necessidades.

Senti falta da liberdade, do riso e da sinceridade no olhar dos “doidos varridos” de minha cidade, que mesmo diante do sofrimento que carregavam eram capazes reafirmar o “humano, demasiado humano”.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *