Na Torre das Donzelas

Susanna Lira é uma mulher brasileira. Atua no cinema nacional e produzindo documentários também para televisão há mais de duas décadas. Quando mês passado no Cine Bangüê vi um trailer de Torre das Donzelas, fiquei muito curiosa, e internamente me programei: “esse é imperdível”. E de fato o é. Nasci em plena ditadura, em 1973. No interior, do que lembro era eu menina, de saia plissada e sapato boneca, na frente de uma sala de aula, numa escola pública, cantando “eu te amo meu Brasil, eu te amo”, junto com minhas colegas de classe.

Não se falava em ditadura militar, em repressão, tortura, censura. Assim, essa história seria quase apagada de nossa memória. Apesar do silenciamento em torno do tema, e o medo de falar sobre ele em casa, na rua, ou no colégio, havia uma música que tocava na rádio e que minha mãe adorava, era uma de suas preferidas, e todas as vezes que eu escutava ficava arrepiada. Começava assim: “Caminhando e cantando, e seguindo a canção, somos todos iguais, braços dados ou não, nas escolas, nas ruas, campos, construções… vem vamos embora, que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. A canção de Vandré, “Pra não dizer que não falei das flores”, era a brecha, a bacia semântica de um discurso público clamando por liberdade, justiça e democracia que pelas violências institucionais e opressões ao longo do tempo, se tentou silenciar.

Torre das Donzelas recupera uma parte linda e potente da história de mulheres perseguidas, torturadas e detidas nas celas femininas do presídio Tiradentes durante a Ditadura Militar(1964-1985), inclusive uma delas muito conhecida do povo brasileiro. O presídio localizado no centro de São Paulo foi demolido, suplantado. Só que a Torre estava num lugar mais profundo das mulheres que lá viveram. A genial e perspicaz Susanna e sua equipe recriaram a Torre, seus cômodos, seus objetos, as escadarias. Ela criou recentemente a passagem poderosa do esquecimento à memória. Torre que foi ao longo do tempo ressignificada na alma de suas prisioneiras políticas.

E onde a gente imagina que vai sair dor, ódio, fragilidade, sai pelo olhar, gestos, desenhos, fala, os testemunhos miraculosos de força e consciência profunda, das estratégias maravilhosas de resistência pelo viés do humor, do afeto, do lúdico, da leitura, da solidariedade vivida, partilhada e do autocuidado. O silêncio foi rompido mais uma vez e a ruptura com o silêncio exige muito, sobretudo das mulheres. Ao estar e estudar no Chile em alguns momentos de minha vida, aprendi o que a ditadura havia feito com América Latina. O povo chileno, seus historiadores, antropólogos, artistas, psicólogos, e tantos grupos, evisceraram a ditadura militar no país inteiro. Reergueram suas memórias, porque, como lá aprendi, verdade e justiça é igual à cura.

O documentário foi rodado há sete anos, agora finalizado, circula num período em que alguns negam a existência da Ditadura, instituições educativas e educadores são perseguidos, artistas são insultados e sofrem tentativa de cerceamento e se dissemina a cultura do ódio e das armas. De certo modo, neste contexto, a Torre das Donzelas pode ser um farol que nos ajuda a não cair em obscurantismos.

As mulheres, no filme, quando falam sobre sua experiência de superação, nos apresentam também socialmente um caminho de reconstrução e afirmação da liberdade e democracia. São falas de muita consciência sobre o modo de ser e estar no mundo como alguém que ama muito este País, e por isso luta por ele e o defende, ainda que grande parte não compreenda. Muitas delas, conforme ressaltou a diretora numa entrevista, se dedicaram à Educação.

Acredito que a dedicação à Educação como uma prática de liberdade permitiu ainda a reconstrução de significados de morte em vida, muita vida, com afeto e humor, cotidianamente. A educação nos possibilita a reconstrução como pessoa humana e ajuda a entender a relevância do espírito coletivo, da alteridade. Ajuda a entender que ter um espírito crítico vai muito mais além do que propagar qualquer ideologia. Um espírito crítico nunca, especialmente internamente, vai se deixar aprisionar por qualquer ideologia, ou sorte de heresias.

Na Torre das Donzelas, a fala de uma das protagonistas diz que: a pior coisa que a cadeia pode fazer com alguém é tirar o futuro dela. Não é admissível, você não pode ser personagem de uma epopeia só (Dilma Roussef). O documentário, dirigido por Susanna, é um movimento de autoria fantástico, na reescrita de nossa história recente, em que a resistência delas ao longo do tempo, nos lembra ainda que “eles são muitos, mas não podem voar” (Pavão Misterioso).

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