Depois do Natal, a Retrospectiva

O Natal sempre foi mais fácil para mim, mesmo com a correira e trabalheira. O difícil, acho mesmo, o que está em curso, em trânsito, a simbologia do fim e do começo. O entre-lugar, o não-saber, o vazio, o que está por vir, as páginas em branco. Durante um longo tempo pude me refugiar dessas questões no abraço de minha mãe. Ela era o portal sagrado que me conduzia de um ano a outro. Por isso onde quer que estivesse, viajava quilômetros até chegar, mesmo que fosse no último segundo do ano, às portas da casa de mainha. Aquele abraço no apagar das luzes de uma cidade do interior significou por décadas tudo de mais intenso para mim.

Ainda que passasse ano inteiro fora, longe, bem longe, era nos braços dela que queria estar no apagar das luzes do Ano Novo, era como um solstício só meu. Era como se ela fizesse um apoio para que eu pudesse saltar novamente em direção ao abismo e que dali, naquele impulso, eu pudesse sair voando, alto, cada vez mais alto, mais livre, renascida.

Há muitos anos ela não mais acompanha esse instante primordial. Em parte. No íntimo, no Infinito, na minha escuridão ela está lá. De que forma? Não tem forma. Aprendi a lidar com a ausência de corporeidade com ela. No início foi um estresse pós-traumático, cujas consequências se desdobraram por anos. Foi como um choque que perdurou por várias temporadas, disparando vez por outra uma descarga de energia incontrolável. Depois fui lentamente aprendendo a lidar com os afetos por fora do corpo, pelo fio invisível da memória.

A memória reconstruindo a vida cotidiana, micro, mínima. As lembranças, os ensinamentos, a experiência contraditória. Quando atravesso o último segundo do dia do ano em direção ao segundo seguinte do primeiro dia do ano eu fecho os olhos para simular a escuridão das luzes apagadas das cidades do interior. Abraçada às pessoas amadas eu navego no silêncio e na total ausência de luz. Sinto o susto do vazio encontrando o Infinito do Ser. Me surpreendo com o Mistério da Vida. Por um instante ínfimo sinto como se estivesse no céu como uma bola de assopro, completamente entregue aos Céus, ao Sagrado. Reencontro tudo e todos que amo em mim.

Se por um lado chego no momento seguinte do ano que começa de certa forma como um contínuo. Por outro, é como se tivesse deixado tudo para trás e cortado muitos cordões, algumas amarras. Com o passar do tempo, com a maturidade, sem precisar mais de calço para novamente saltar. Sem sentir necessidade de saltar, apenas caminhar, seguir simplesmente… Gosto de abrir os olhos e ver o céu repleto de estrelas, e os fogos pintando os céus, transeuntes, instantâneos, pulsando no ar.

O que virá depois disso? Simplesmente não sei. Imagino apenas que entre o nada e o acontecimento estão lá minhas preces para que tudo fique bem, seja qual for a travessia, essa sempre é a minha oração. Agradecer, sempre. Difícil suportar esse mundo sem gratidão ou gentileza.

Minha retrospectiva não tem as catástrofes, nem os rostos caricatos da geopolítica, porque com o passar dos anos parecem um disco de vinil furado. Opto por uma mirada não linear dos acontecimentos na sua subjetividade. Acho que até nem quero contabilizar o Tempo, quero narrar simplesmente, quero cantar os Tempos. Dos livros que me ensinaram, A Solidão dos Moribundos e Sobre o Tempo de Nobert Elias e Reengenharia do Tempo, da Rosiska Darcy de Oliveira me tocaram sensivelmente. Escritas lindas sobre o viver, as temporalidades, a ausência. O ser como experiência de criação e construção de tempo-espaço. O milagre de existir.

Das cenas que mais amei: os pássaros na varanda voando livremente; as flores brotando; o cheiro da mirra e da malva. O desafio das páginas em branco e a possibilidade de deixar cada palavra voar… As músicas que salvam do obscurantismo um mundo que se desfaz e o seu recriar, porque “ os sonhos não envelhecem”… Os sons do amor, o perdão e o abraço juntos, bem colados. Os reencontros envoltos em tanta alegria.

Agradecida a Deus porque foram tantas mãos se encontrando e se desdobrando em solidariedade, acolhida, aconchego, dança, indignação, poesia, sabedoria, compreensão, cura, estímulo e Força pra sempre seguir adiante. Feliz Ano Novo!!!!!

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