Tias

Um dia após a celebração de meu aniversário, semana passada, fui informada da partida da última tia, ocorrida numa cidade do interior. A primeira de minha avó materna foi a última a partir, aos 94 anos. Uma dádiva não alcançada por suas irmãs, que deixaram esse mundo muito cedo. O acontecimento me fez pensar no universo feminino complexo e não convencional de minha família, especialmente em se tratando da constelação de irmãs de minha mãe e do meu pai, ou seja, das minhas tias. Talvez por isso sinta que “A Excêntrica Família de Antônia” seja um de meus filmes favoritos.

Fiquei em meio aos afazeres do sábado chuvoso lembrando da tia de número um, escavando na memória referências dela. Não me senti triste, mas grata, por sua longevidade e a paz com que havia ido. Ela teve tataranetos. Nunca a vi jovem, quando nasci, já era uma mulher madura. Na minha imaginação uma mulher severa, a vi sorrir poucas vezes. E por morar noutra cidade não a víamos com regularidade. O que me impressionava nela? A dedicação a sua fé. Era bem marcante sua devoção, o rigor com que ela impunha suas crenças a si mesma. E por incrível que possa parecer, foi o que a manteve de pé e sã diante das agruras vividas, que não foram poucas.

Ela sempre dizia que se mantinha de joelho, orando, intercedendo, especialmente por uma de suas filhas, rogando a Deus por um bom marido para ela. Eu, que ouvia seu testemunho na infância, achava aquilo meio que doidice, e pensava: porque fazer um pedido desses, particularmente por alguém que sequer namora? Com a maturidade fui compreendendo as preocupações da tia número um, seus valores, sua cosmovisão. E num contexto marcado por muito machismo, talvez fizesse sentido mesmo as preces. Orações que foram atendidas.

Certa vez, numa situação dramática de enfermidade, minha mãe me pediu que viajasse nas minhas férias da universidade para cuidar dela num hospital. Foi essa nossa maior convivência, diante dos desafios da dor. Surpresa por minha disponibilidade, ela se constrangeu um pouco. Não era acostumada a receber, apenas a servir. Serviu anos a fio seus patrões com banquetes, sua filha e netos, sua igreja. Naquela ocasião, por maior que fosse o desconforto na enfermaria, me senti muito em paz e alegre, pela oportunidade do breve convívio, com um dos fios que entrelaçava a história de minha mãe, e me senti orgulhosa demais pelo respeito e cuidado que ela tecia com suas irmãs.

Lembro que a de número dois foi a primeira a partir, ainda jovem. A mais alegre de todas, e contraditoriamente a que mais tinha motivos pra chorar. A favorita de minha mãe e de quase todos nós da família. Se por um lado era a preferida, por outro era a controladora. Foi na radiola da de número dois que atravessamos décadas sonoras descobrindo a musicalidade do Brasil. A de número dois tinha uma filha e era solteira, se mantinha com seu próprio dinheiro, sabia construir casas e administrar, tinha um espírito além de seu tempo, tinha humor apurado, sabia dançar tango, cozinhava maravilhosamente. Não sei por quais razões ela e minha mãe se mantiveram juntas até no momento de sua partida. Quando ela viu a morte, lentamente se aproximando, decidiu deixar-se ir não se submetendo a violência dos tratamentos químicos, mostrou sua face indomável até para a morte. A minha mãe só restou a cumplicidade e a entrega para viver ao lado dela sua última travessia.

A de número três era afoita e sorridente, faceira, habilidosa: tocava berimbau, cantava, cortava cabelo, adorava bater perna e falar da vida alheia. Cozinhava bem. Sabia receber. Era solar, e não por acaso, foi a única das filhas de minha avó que partiu rumo ao litoral. A mais nova de quatro filhas, caçula, que viveu protegida pelos filhos e filhas que teve até o fim de seus dias. Amargou no amor, mas nunca baixou a cabeça. Soube fazer do azedume afetivo de seu relacionamento conjugal uma limonada bem doce e gelada, com a qual brindava suas superações cotidianas.

A tia de número quatro veio da linhagem paterna. Linda, introspectiva, viúva antes de chegar aos trinta anos, três filhos. Cuidou da sogra, de seus pais, da cunhada até quando pôde. Não externava tristeza ou solidão. A única a dirigir, e foi com ela que nos anos 1970 conheci sobre carros da Fiat, Ford, Chevolet. Passou a comandar na juventude, com a morte do marido, uma fábrica cuja força de trabalho era majoritariamente masculina. E deu conta. Foi ao longo da vida a melhor amiga de meu pai. Quando o último desses fios femininos se alargou ao Eterno, eu lembrei do conto de Vasalisa, do livro “Mulheres que correm com os lobos” (Clarice Pínkola Estés), lembrando que a “intuição é o tesouro das mulheres”. E que antes de partir, todas elas, a seu tempo, sopraram em minha alma alguns de seus maiores segredos.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *