Cafarnaum

O próprio nome já tem uma densidade. Procurar na memória esses lugares de sentido reverberam em textos do Novo Testamento, em que ocorrem diferentes milagres protagonizados por Jesus e outros sujeitos à margem. No cinema, a diretora libanesa Nadine Labaki tira de nós a parte turva do olhar, causado talvez pela dormência da felicidade amalgamada nas redes sociais, ao construir um filme de estranha beleza diante das dores de um mundo sob ruínas.

Divulgação

Cafarnaum chegou finalmente depois de tanta espera, tendo passado por muito lugares no mundo, e obtendo seu devido reconhecimento através dos grandes prêmios mundiais de cinema. O filme conta a história de uma criança que sofre com violência no interior da familia, e decide processar seus pais por isso. Mas o que descrevo é algo muito superficial. Porque só quem puder e quiser ter a experiência de vivenciar Capharnaüm vai ter acesso a um pouco do que essa história quer nos dizer.

O filme não é confortável, não é suave. Todavia tem qualidades preciosas, sob meu ponto de vista. Uma delas é tocar com profunda sensibilidade o Caos, e poder ir lentamente dando alguma condição de enxergar como intimamente as pessoas que sofrem vão tentando cotidianamente se sobrepor a um ordenamento autodestrutivo de um desequilíbrio (também Planetário) que atravessa os indivíduos, que nos corrói diariamente.

Desse mesmo Caos narrado também esteticamente, os personagens vão buscando caminhos de autodeterminação. A criança maltratada, as mulheres refugiadas, a família massacrada pela tradição, a menina violada, um bebê.

O que mais me assustou foi o fato de que aquele lugar descrito não parecia distante, estava colado a tudo que somos como algozes de nossa própria espécie. Compreendendo também que um dos milagres narrativos do filme reside no fato de que há em Zain ( Zain Al Rafeea), seu principal personagem, uma centelha de algo que não chamo mais de humanidade, mas que acredito ser uma Força além do existir como homo sapiens (esse já num estado de crescente decomposição).

Há muitas identificações. Como não lembrar das muitas mulheres entregues a casamentos ainda crianças em diferentes partes do mundo, inclusive no Brasil. De que modo não reconhecer a dor dos que, forçados a uma diáspora, têm que viver entre-lugares muitas vezes como mão de obra escrava? Africanos, bolivianos, venezuelanos, sírios, brasileiros dentro de seu próprio País.

Uma das questões que me chamou mais a atenção foi o olhar de uma diretora sobre a vida mulheres, mostrando profundamente as implicações da apropriação de seus corpos pelo Estado, Igreja e outros sujeitos, estruturando a violência pelo controle de suas vidas reprodutivas.

Zain, no Tribunal, ao processar os pais, e questionar por ter vindo ao mundo, deixa instalado um impasse e tensão. Seu pai e mãe, ao tentarem trazer respostas nos ajudam a desconstruir mitos em torno da maternidade, do conceito de família que a Tradição insiste em sustentar, e lança ainda ao Estado um espelho cuja imagem do social não é simplesmente refletida, ela é estilhaçada.

No menino dá para enxergar ainda o surgimento de um Outra experiência de masculinidade. Um personagem complexo. Já encontrei alguns “zains” pela orla de João Pessoa, na década de 1990. E vez por outra ainda os encontro perambulando pelo mundo.

A última cena de Cafarnaum

é uma misteriosa chave para o acesso ou encarceramento… Há muito tempo que não via uma última cena de um filme trazer algo aparente “simples”, repleto de uma beleza infinita, sagrada, desnorteadora.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *