Uma cartografia afetiva

Talvez um filho seja o que resta de nós. Sendo totalmente outra existência em que por vezes passa longe toda e qualquer semelhança. Tem manual para muita coisa, menos para crianças, nem para adolescentes, e honestamente não há para ninguém nesse mundo. Uma vez, grávida, ganhei um livro sobre bebês, imenso. Repleto de sistematizações bem objetivas. Olhei para aquilo e ao folhear só me deu agonia, e ampliou as neuroses. Tratei de largar mão e achar outro endereço para o catatau da pediatria.

Na maternagem me vali da descoberta, porque nunca fui muito de brincar de bonecas, nem com crianças pequenas, nem fui instruída para ter que ser mãe. Brincava com lápis, telefones de brinquedo, papel, caixas, brincava quando criança e adolescente olhando para os horizontes de todas as ruas que morava. Quando optei pela maternidade não sabia muito bem o que seria, sabia apenas que quis que assim o fosse, gozei do pleno direito de decidir sobre meu corpo.

A intuição essa é um ponto forte numa relação com um filho ou filha. Posso dizer que já fui muitas mães, porque cada fase vai tecendo uma cartografia afetiva, um desdobramento de energia. Cada etapa até a chegada da maioridade e autonomia é como um livro aberto e um capítulo novo a ser escrito, sem borracha disponível. Vez por outra a gente pode até querer voltar a ler as páginas vivas que falam por si mesmas. Mas o bom mesmo é conjugar tudo no presente, assim, como canta lindamente Renato Russo, “amar as pessoas como se não houvesse amanhã”.

Vez por outra eu rio sozinha lembrando das palhaçadas que já vivi nessa vida de mãe. De tudo que já aprontei. Já fui de tudo, de cozinheira à espiã, promotora de festas infantis, agente de viagem, contadora de histórias, cantora, pintora, feiticeira, fazedora de massa de modelar e pipoca. E já faz algum tempo que liberei ao voo, cultivando asas nos pés, aquelas asas de que nos fala “O Menino Maluqinho” de Ziraldo, o mais lindo moleque da literatura brasileira.

Quando chega essa hora do outro crescer a gente sente como essa força pode ser infinita e além. A maternidade é quase como a construção de uma filmografia que apenas poucas pessoas assistem. A gente, protagonista, transita entre muitos gêneros, por vezes tem um draminha que sempre termina em comédia.

E de repente tá lá aquele ser grande, independente, dançando junto a ciranda da vida com pisadas firmes. E a gente fica aquela emoção profunda do primeiro choro, gargalhada, queda e passo, engasgo, fonema e sílaba, corrida e palavras, as imagens do banguela, dos primeiros passo de dança, dos sustos que te levaram às pressas ao hospital, das primeiras leituras, fotografias, das noites de pijama… E quando você vai ver as tantas passagens da Lua, aquele garoto de quem você colheu o primeiro dente, já faz sua própria barba. E ri horrores de sua cara, e por vezes te trata na maior formalidade, ainda que te peça um cheiro na hora de dormir.

Se um dia você olha aquele livro na estante sugerindo as dicas de como criar meninos e meninas, esquece. Se quiser mesmo insistir, arrisca Freud, Lacan, Jung… para dar um caldo melhor, se houver tempo para isso claro.

A maternidade talvez seja o desenvolvimento de uma forma de cognição que a gente vive melhor sentindo que filosofando. Embora filosofar sobre a maternagem seja sempre interessante, tendo em vista a força desse arquétipo, ainda que o comercial Dia das Mães tenha passado. O tema segue movido pela subjetividade das horas.

Tem mães que gosto, outras nem tanto. Mãe não é tudo igual, como apregoa o senso comum. Há mães que acho lindas aparentemente e fantasmagóricas como as vilãs da Disney. E sobre os pais? Esse é outro capítulo, mas para os que não desertaram da paternidade.

O amanhecer de um dia de outono trouxe a numinosidade do dia em que meu corpo abriu passagem para outra vida, outro ser, e tudo que fui um dia, continuou seguindo junto comigo. E a novidade também.

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