V no país sem vacina

A desinformação é o que faz V. ser tão odiada. Mas não é apenas isso. Embora seja uma grande contradição, ao longo da história V. vem sendo reprimida, violentada e por vezes exterminada. Há quem também sinta nojo de V. Embora continue sendo ela muito, muito desejada. Há de tudo na história de V. De quem ame, odeie, repulse, há quem observe em V poder, e também por isso busque eliminar. E tudo isso parece muito estranho, especialmente porque parte da humanidade vem de V, passa por V.

Parece inacreditável que final do ano tenebroso, mais uma polêmica, para variar, tenha ocupado as redes (anti)sociais no país, por conta do trabalho da artista visual Juliana Notari, que moldou, na Zona da Mata pernambucana, uma V. de 33 metros. A obra causou reações, para variar violentas. Não sei usar nenhuma qualificadora que exprima qualquer adjetivo sobre a sociedade brasileira. Para pensar as questões daqui a gente tem que escrever sempre tomos enormes, e colocar ao final reticências.

Mesmo que a artista tenha explicado Diva, nome da obra, refletindo sobre as analogias e expressões de violência contra mulheres em nossa sociedade feminicida, nada amenizou. E a fogueira virtual (simbólica) ficou queimando. Muitas pessoas no Brasil não se chocam há tempos com a violência ritualizada cotidianamente na TV. Corpos negros, em geral, ilustrando a cena do almoço ou jantar. Corpos estendidos seja nas comunidades a que essas “pessoas” destituídas de identidade, dignidade e cidadania, ou ambulâncias nas portas dos hospitais, ou em terrenos baldios. Todo dia, na hora do almoço ou jantar, nesse país, ninguém parece mais se incomodar.

Nesse mesmo país, em que se evoca o pavor a V. ou a Diva de Juliana Notari se fala por pouco tempo das crianças mortas ou desaparecidas, ou desaparecidas e encontradas mortas. Não há esse mesmo fervor, apelo público e mobilização nas redes (anti)sociais para que as crianças sejam preservadas, ou que justiça seja feita a quem fere e mata as crianças – em geral negras -, daqui .

Além das questões identitárias, que tanto causam acalorados debates nas redes (anti) sociais, parece que há um certo apagamento de questões que são urgentes. E embora reconheça que as questões identitárias também sejam vitais, preciso compreender que há tantas que a antecedem. Tem sido excessivamente comum no Brasil hoje a estratégia de construção de polêmicas como ação de retirar de foco questões muito urgentes do nosso país. Essa é uma excelente estratégia, funciona, e parece que tem reorganizado as lógicas de noticiabilidade, mas com ênfase evidentemente na desinformação e desmobilização social.

Isso me faz pensar sobre uma música de que gosto, do Pato Fú, chamada “Televisão de Cachorro”. Que fala bem assim: às vezes penso que eu assisto TV como um cãozinho que vê o frango rodar/ que mais e mais saboroso de se ver/aguça cada vez mais meu paladar/ E quando uma gotinha de óleo cai/ Como uma novidade que entrar no ar/ Eu para tudo, eu paro de pensar/ Só pra ficar te olhando, televisão. A letra é do querido John Ulhoa, figura bacana. E aí eu fico pensando a guinada para o subterrâneo, quando cada um, pelas telas individuais, geridas pela opacidade dos dados e “personificadas” das redes (anti)sociais começam a mostrar um certo mundo rodar. Um mundo que parece ser de um só indivíduo, tão bem projetado de forma binária para “atender” sua necessidade narcisista. Agora todo muito tem sua própria caverna de Platão operada pela Big Data, e quem gere os bits?

Embora não cause mais espanto. A realidade é que, no Brasil, a fome permanece alarmante. A fome de comida. É isso mesmo, por vezes a gente precisa ser redundante. No século XXI no Brasil você pode ser tratado como consumidor e não ter o que comer, ou ser envenenado pelo que come, quando consegue se alimentar, dada a precariedade nutricional e insegurança alimentar).

Dados veiculados na imprensa em setembro do famigerado ano que passou afirmam que, em cinco anos, cresce em 3 milhões o número de pessoas em insegurança alimentar, que passam fome. País de terras cultiváveis, de fartura, de desperdício. E parece que pouca gente quer conversar e se mobilizar para enfrentar esse tipo de falência societária. Mais fácil é atacar V. ou suas forma de representação. Seria de fato cômico, se não fosse a tragédia por um lado, de ser essa atitude expressão de misoginia. E por outro, estratégia também para se fugir da responsabilidade diante de questões que precisam de enfrentamento e superação urgentes, porque, infelizmente, o Brasil é um país de famintos.

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