Costura com linha do tempo

Prestes a fazer aniversário me sinto estranha, muitíssimo. É um sentimento que por vezes aparece. Uma vontade enorme de fazer o caminho de volta na linha do tempo. Não pensar no hoje, nem talvez esboçar qualquer futuro. Não é uma vontade de mudar qualquer curso. É um sentimento latente voltado ao impossível. Teve dias em que veio a imagem das ruas que morei. Lembrei muito da menina sentada na porta de casa. São as memórias mais antigas que carrego. Uma rua silenciosa, clara, em que pouca gente passava, uma rua labiríntica para uma criança.

Pensei também na Irineu Jofilly, por onde sempre percorria até chegar no cruzamento com a Dezoito do Forte e Peregrino de Araújo, onde ficava a casa de meus avós. Nunca esqueço da independência de poder passar por essas ruas. E nelas entrar vez por outra nas bodegas de seu Antônio Davi, onde morria de medo do pastor alemão, Faruk, tão manso. Mas que pelo meu olhar de menina com seus 6 ou 7 anos de idade parecia um leão a querer me devorar. Uma vez fui a bodega e Faruk queria brincar comigo, saí correndo loucamente, cruzando a Dezoito do Forte, e Faruk correndo para brincar comigo. Minha sorte foi poder “escapar” emburacando na casa de minha vó. Só anos depois entendi a mansidão de Faruk, mas a infância já havia me deixado. Nesses dias reencontrei na memória a bodega de seu Pedro Salim, onde adorava passar para comprar pão. Gostava muito de pronunciar o sobrenome Salim, até hoje ainda gosto. E foi bem nesse período em que podia viajar também na literatura do Malba Tahan, que durante muito tempo pensei que fosse uma mulher. Nesse período também amava passar para comprar doce de leite em seu Sebastião Gato, onde haviam tachos imensos de ferro fundido com doce quentinho, e de boa fé, quando dava, deixavam a gente também beliscar nos tachos que já estavam mais esvaziados.

Sinto saudades, muitas, intensas… De certo modo em meu ser há um olho invisível que é espelho de tudo que amo e está guardado, nele vez por outra eu espio essas frestas de memória, porque gosto muito das imagens passeando por lá. Ainda que algumas delas me faça chorar, de saudade. E as tantas outras me façam disparar de tanto rir, me levando a crises de riso solitárias. Eu gosto dessa “solidão” compartilhada na invisibilidade do que eu ainda possa tocar, mesmo que nas lembranças.

Eu morei numa tal Rua do Prado, que era uma sucursal por onde passava todas as marmotas que se pudesse imaginar na minha cidade. Era a rua dos acontecimentos. Tudo existia naquele pedaço de BR que entrava no perímetro urbano e chegava na rua de minha escola preferida, que se localiza onde nasceu a cidade. Ou podia ser o contrário. A rua poderia emergir do Cine São Francisco e desembocar na BR a caminho de Santa Terezinha, Piancó, Itaporanga e Conceição.

Se na Augusto dos Anjos eu vivi a infância. Lá no Prado vivi todas as adolescências que alguém poderia viver. Não por acaso vez por outra nos sonhos sou levada de volta ao Prado. Banhos de chuva memoráveis na escuridão interrompida por relâmpagos intensos e trovoadas. Certa vez, tive a ilusão de que a mochila da escola era impermeável e sai da aula direito para o banho de chuva até chegar em casa: passei pelo cinema, pela padaria, pela biblioteca da Praça da Pelota, pela sinuca, pela drogaria de seu Durval, a casa de minha tia, e assim fui até chegar por casa. E não tinha pressa… Lembro até hoje do caderno ensopado, escapou, mas engelhado seguiu comigo por meses a fio. Naquele tempo as coisas não eram tão descartáveis.

A vizinhança da Rua do Prado era muito solidária e absolutamente eclética. Claro que estou falando do trecho onde morava. Porque parecia que cada quarteirão dessa rua era um país próprio. No trecho que era nossa cartografia afetiva a gente trocava muito: brinquedos, imaginação, temperos, comidas de milho, as histórias dos mais velhos que enchiam nossas cabeças de novas paisagens. Por muitos anos dormíamos com as portas abertas, o medo não nos atravessava. E nossa vizinhança caminhou de mãos dadas por longos anos a fio. A casa 313 virou um prédio, mas algumas ainda estão por lá.

A gente inventava muita moda também: de comida, de brincadeiras, de jogos de tabuleiro. Eu, Marisa Dantas, João Vianney e Ubira vivemos uma temporada inteira jogando Ludo como se estivéssemos protagonizando o filme Piratas do Caribe. Esse filme que passa na minha cabeça vez por outra dá para rebobinar, para poder reencontrar tudo que há de mais sagrado e que ainda vive em mim.

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