O Rio de Janeiro pelo avesso

Sandra Raquew Azevêdo

O Rio de Janeiro pelo avesso

O povo é a carne humana, o aconchego, o povo é tudo” (Heitor dos Prazeres)

Recentemente estive no Rio de Janeiro pela primeira vez. Considero a primeira, porque nos momentos anteriores só aportei no Galeão. Ao segui para Conferência Brasileira de Comunicação Cidadã, realizada na cidade de Niterói, pude, finalmente, permanecer uns dias em solo fluminense. O Rio sempre esteve em meu imaginário, acredito, como na maior parte dos brasileiros, que consomem imagens da ‘Cidade Maravilhosa’ pelas telenovelas, músicas, vídeoclipes. Nesse território simbólico há muito de criatividade e também estereotipia.

Fui crescendo ouvindo falar da cidade histórica, símbolo de modernidade, de transformações culturais. Porém me assustava um pouco a cidade espetacularizada, seja pela ampla presença de pessoas do mundo inteiro, seja pelas imagens aterrorizantes trazidas pelos telejornais dos flagrantes de violência urbana, responsáveis inclusive por me fazer retardar uma ida ao lugar. Estava em meu inconsciente, de forma residual, imagens dos arrastões nas praias, da chacina da Candelária, do sequestro ao ônibus 174, e mais recentemente o feminicídio da vereadora Marielle Franco e o assassinato do motorista Anderson Gomes e do sequestro do ônibus na ponte Rio-Niterói. Rio 40 graus.

Pairava ainda na minha imaginação o Rio de Janeiro de Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, João Antônio, Clarice Lispector, Carlos Drumond de Andrade e Nelson Rodrigues. Enquanto andava pelas ruas da cidade, tocava em minha mente O Beco e Alagados (Paralamas do Sucesso), Rio 40 graus(Fernanda Abreu), Kátia Flávia (Fausto Fawcett), Cariocas(Adriana Calcanhoto), O Mundo é um Moinho (Cartola), Carinhoso( Pixinguinha).

Ao andar pelas ruas de Copacabana, onde optei ficar, lembrei absurdamente de minha irmã, Suely Araújo, que destemida optou por fazer faculdade no Rio de Janeiro nos anos 1990. Recordei do Betinho, irmão do Henfil, e seu olhar inesquecível. Ao ver o Arpoador, Cazuza, o poeta. Inúmeras são as referências de pessoas e lugares, poesias e músicas em torno da cidade.

Todavia mesmo diante da beleza do Corcovado, do Jardim Botânico, da antiga Rua do Ouvidor, das praias de Ipanema, Leme, Leblon, do Pão de Açúcar, do Aterro do Flamengo, da Confeitaria Colombo, símbolos da cidade nos cartões-postais, foi impactante ver com meus olhos os morros cariocas, que estilização nenhuma poderá traduzir o mapa cultural traçado historicamente. Complexo do Alemão, Providência, Rocinha, Santa Marta, Jacarezinho, Complexo da Maré. A Maré que o mundo recentemente ouviu falar por causa do feminicídio da vereadora Marielle Franco. Lugares que me soam como um país cabendo dentro de uma cidade. Territórios complexos, rizomáticos, que nos falam muitíssimo sobre escravidão e racismo no Brasil.

É assustador o extermínio da população negra sob a prerrogativa da “guerra ao narcotráfico”, e encarceramento dessa mesma população monetarizando cada vez mais o complexo industrial prisional, como assim discute a Angela Davis.

É aterrorizante perceber, seja de forma sutil ou gritante, a negação invisível e cotidiana do direito à cidade como território para existir de forma pacífica, digna e livre. Eu vi, infelizmente, um Rio de Janeiro segregado, fragmentado, interditado por uma necropolítica. Fiquei pensando enquanto andava pela cidade nas ações de sobrevivência, de tentativa de escapar da asfixia provocada pela obsessão em “segurança”, quando o problema maior é desigualdade profunda e estrutural.

Eu presenciei também no Rio algumas brechas incríveis, e isso me trouxe alguma esperança, ao ver jovens negros das comunidades assoladas pela militarização da vida cotidiana, rompendo um ciclo histórico de violação de direitos, através do acesso à educação e às artes. Se o amor, como canta Chico César, é um ato revolucionário, a Educação é sem sombra de dúvidas, um ato um ato de amor e portanto transformador.

Um dos jovens que conheci, filho de paraibana, trabalhadora doméstica, morador do Complexo do Alemão, estava no evento acadêmico que fui, socializando sua pesquisa de doutorado, desenvolvida na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris. É mérito dele, sim, mas representa uma conquista diante de uma luta sócio-histórica de enfrentamento à negação constante de direitos. Ele não tem idéia como a presença dele e de outros jovens, e suas palavras me encheram de esperança, força e consciência, ao vê-los rompendo os mecanismos de controle (por vezes invisíveis, contudo na maioria das vezes ameaçadores e exterminadores). Eu vejo, aos poucos, o morro descendo, sem ser Carnaval, como canta o Wilson das Neves e Paulo César Pinheiro, subvertendo à lógica de interdição da cidadania ativa, fazendo do Rio, cada vez mais, um lugar de grande potência, imaginação, poética e pensamento de inovação social.

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