Há menos de 24h do trágico desfecho do seqüestro de Eloá Cristina Pimentel, por Lindemberg Alves, todos atônitos procuramos “compreender” via mediação dos meios de comunicação social e de especialistas da segurança pública, psicólogos, e outros, um fato presente cotidianamente no noticiário: o assassinato de mulheres.
Muitas são as explicações que tentam dar conta do comportamento do jovem, cujo perfil durante o processo de negociação fora retratado pelos meios como de um rapaz tranqüilo, trabalhador, que tinha planos para casar. “Dificuldade de lidar com as frustrações”; “comportamento passional”, “de tolerância muito baixa às frustrações”, entre outros argumentos são discutidos publicamente em jornais, sites, rádio, enfim, em todo processo de agendamento desta lamentável crônica de mais uma tragédia midiatizada.
Inúmeros aspectos deste acontecimento são ressaltados na cobertura: o lugar, os protagonistas, o tempo, amigos, imagens, os momentos de negociação, os lugares de origem de Eloá e Lindemberg, as imagens… Todavia há um aspecto a ser considerado nesta notícia, e que passa intocado na cobertura de crimes que possuem semelhança com o homicídio de Eloá, o fato de que eles se relacionam com as desigualdades de gênero. Se nos negarmos a discutir também nos noticiários esta face da violência, será muito difícil à superação de algo que pode ser considerado, lamentavelmente, um padrão cultural vigente, a prática de crimes contra as mulheres.
Um breve monitoramento de mídia permite perceber a brutalidade e reificação de crimes como estes: eles não são apenas crimes passionais, podem ser situados numa teia complexa de construção de valores sociais que forjam um feminino fraco, vulnerável, incapaz e sem condições de decidir a própria vida, em contraposição a um modelo de masculinidade rígido e legitimado socialmente a partir da força, da dominação e do controle. São de certa maneira estes alguns dos elementos que mantém os mecanismos psíquicos do poder na constituição do sujeito e a na construção da sujeição.
Perceber os gêneros como processo de mediação do social é urgente para nos darmos conta da violência contra a mulher como um fenômeno social cujo aparecimento cotidiano nas mídias também precisa ser interpretado, refletido com e a partir dos veículos de comunicação e tendo como foco o papel social dos profissionais de imprensa.
A motivação de Lindemberg em manter seqüestrada Eloá e tentar por fim a vida da jovem se inter-relaciona com outros fatos conhecidos da sociedade brasileira, como os assassinatos de Ângela Diniz, Sandra Gominde, Daniela Perez, e ainda de inúmeros casos de violência e homicídios femininos que são noticiados, mas que carecem não de uma tentativa de tentar compreender o comportamento masculino, mas de questionar os valores sociais que se reproduzem nas trocas simbólicas e tecem ainda, tristemente, este predomínio do falo que oprime e extermina.
O tiro na virilha de Eloá não é só uma metáfora, mas uma expressão do ódio da tentativa frustrada de continuar mantendo o exercício do controle sobre o corpo das mulheres, por isto me sinto hoje também transpassada por esta bala.
Numa das notícias veiculadas sobre o Caso Eloá, dois personagens sobrenaturais surgiram: um anjinho e um diabinho que acompanhavam Lindemberg. Parece inacreditável, mas este recurso, muito comum entre homens que praticam violência contra as mulheres, aparece mais uma vez como uma máscara, uma performance que busca esconder o lado perverso de um imaginário social que em momentos como este é despertado pelos disparos protagonizados por um homem que representa os mecanismos simbólicos forjados socialmente e que negam cotidianamente às mulheres o seu direito a vida.

Sandra Raquew dos Santos Azevedo, jornalista.

Comments (16)

  1. Cara Sandra,

    Parabéns pelo excelente texto sobre o caso da Eloá. Sou do Fórum de Mulheres de Pernambuco e queria te pedir autorização para circular o seu texto entre o movimento de mulheres e outros movimentos sociais, para ver se estimula o debate e saímos desse torpor absurdo, que só contribui para perpetuar a tragédia que é a violência contra as mulheres.

    Um abraço,

    Ana Paula Portella
    anapaula@soscorpo.org.br

  2. bela reflexão, sandra. a mídia se comportou tão errada quanto a p0licia, neste episodio…

  3. Cara Sandra,

    Além dos detalhes aboradados por vc neste texto outros me chamaram a atenção. O primeiro foram os locais escolhidos pelo assassino para atirar, ou seja, a virilha Pra simbolizar o dominio do macho e na cabeça, para dizer que não temos permissão para pensar, decidir, escolher…Assim pensam a maioria dos homens.

    BASTA DE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER.

  4. Penso que esse discurso é centralizador em relação a criminalização do “gênero” masculino sobre o feminino. Trata-se da centralização de culpa, como se o algoz também não pudesse ser vítima. Não falo específicamente desse caso explorado e desrespeitado pela mídia que impõe àqueles que insistem em confiar nessas informações, histórias desencontradas com o único propósito de ser mais veloz que o meio concorrente. Não discordo que a recorrência de atos violentos contra mulheres mereciam uma refelexão mais profunda por parte dos cidadãos que acreditam nas soluções por via do Direito. Porém, um outro ato social que está inbricado à violência contra a mulher corre velado e bem escamoteado pela astúcia de suas executoras: a natureza opressora feminina. Homens são culturalmente agressivos e executam seus atos como expressão desesperada da violência incontida. Mulheres minam silenciosamente a harmonia masculina na tentativa de recuperar o que historicamente lhe foi roubado por uma série de interesses econômicos e sociais. Não vejo nessa patologia social um sintoma que dói de um lado só. Por um lado não justifica abandonar a investigação das causas da violência masculina que não se contém, por outro, vale a pena levantar essa questão da divisão da culpa com o feminino que, sendo assim, reverte para ela o ônus da fatalidade causada por um comportamento que também tem que ser investigado na sociedade para entendermos porque provoca tanto a ira masculina, embora atos extremos, como o de Lindenberg sobre Eloá, não possam ser justificados. No caso Nardoni, o provável executor de sua própria filha revela mais uma vez uma violência dupla do sexo masculino sobre o feminino: a criança assassinada e a mãe biológica existencialmente destruída. Mas as investigações levam a uma algoz silenciosa e que não maculou suas mãos em ato tão desumano: a segunda mulher de Alexandre Nardoni, madrasta da menina assassinada que pode ter sido a condutora maliciosa de toda trama e tensão necessárias para culminar na quebra de toda a harmonia até o ato criminoso.

    Beijos,
    Saulo

  5. Olá Sandra, minha grande amiga.
    Recebo seu texto atrvés de uma lista de discussão das mulheres negras aqui do estado da Bahia. Fiquei feliz, pois conhecia este nome e sobrenome. Quão bom foi saber que do seu blog, saiu um dos textos mais lúcidos de todo este episódio.
    Espero que estejas bem e que possamos manter contato, agora mais abertamente via o recurso do blog.
    Abraços,
    Agnaldo Neiva

  6. Parabéns pelo texto!

  7. Nos últimos dias de cativeiro pensava justamente em como a relação desses dois jovens não foi problematizada pelos midia. Faziam, basicamente, todos os dias, um relatório descritivo das horas de acompanhamento do caso em frente ao apartamento e noticiavam os movimentos da polícia. Nada mais. Agora temos o resultado…

    Bela surpresa saber que tu postas tuas impressões cotidianas por aqui. Adorei!

  8. Prezada Sandra, saúde!
    Tomei a liberdade de postar seu artigo em meu blog e me permitir fazer um intróito que segue abaixo
    Parabéns pelo contundente artigo!
    “Permitam-me um aparte antes da leitura do artigo que segue…
    Mantak Chia, filósofo chinês, escreve excelente tema sobre a dominação do homem, pela força, desde os tempos imemoriais, sobre a mulher, o sexo e de sua prole.
    “Que pena! Um pico de montanha do tamanho de uma polegada quadrada tem sido a fonte de grande inspiração e desgraça há séculos” – Poeta chinês anônimo sobre a obsessão do homem pelo sexo da mulher.
    É lamentável mesmo que o homem, inferior sexualmente à mulher, pois só ela tem a capacidade de engravidar e gerar vida, e é o único ser que possui órgão sexual exclusivo para o prazer (o clitóris), não saiba lidar com esse aspecto frustrante, já que lhe foi dada a força e muito pouco de ternura, biologicamente falando.
    Do contrário, muitas das nossas atitudes são valores de educação, moral e social, que nos condicionam, e, realmente, como o artigo descreve, os homens não são educados para respeitar as mulheres, e, com raras exceções, respeitam a mãe, e só.
    “Sad but true”, mas precisamos mudar essa realidade. Assim, como a mulher precisa respeitar mais a si mesma para que não receba apenas a pecha de vulgaridade que vemos no dia-a-dia.
    Fraternalmente, João Damasceno.

  9. Cara Sandra,não creio que este caso seja exatamente um exemplo de violência contra a mulher. Lembremos que no ano passado uma mulher em São Paulo manteve o ex-marido e a filha por mais de 15 horas na mira de uma arma de fogo.
    O caso Eloá é talvez mais relacionado com um transtornode possessividade que ainda permeia na sociedade brasileira. Certamente este sentimento é muito mais redundante numa sociedade ainda machista como a nossa, mas não está restrito aos homens.
    Muito obrigado pelas observações feitas, mas muito cuidado com as pontuações feitas sem embasamento.
    Um abraço.
    jeferson Peres
    ajperes@portugalmail.pt

  10. Sandra,
    Parabéns pelo texto sobre o caso da jovem Eloá. Como dito anteriormente, um dos mais lúcidos que já li sobre esse sequestro.
    Sou professora do curso de enfermagem em uma faculdade do sul de Minas e peço autorização para repassar seu texto aos meus alunos.

    Abraço,
    Ligia Menezes de Freitas
    freitas@usp.br

  11. Este comentário foi removido pelo autor.

  12. Prezada Sandra, parabéns pelo artigo sobre a morte de Eloá!
    Nesse caso, é bastante evidente o conteúdo machista que minou a operação policial. Frases como “adolescente apaixonado” e “adolescente em estado de confusão, por causa de uma frustração amorosa” entre outras, como que você muito bem descreve, demonstra uma grande tolerância dos “homens” da polícia, para com aquele outro “homem”, o Lindemberg. Esse muito bem equipado, com armas de fogo, faz reféns duas meninas e desafiou o Estado. È preciso denunciar a violência de gênero que ainda persiste em nossa sociedade e casos como esse não podem passar invisíveis. Portanto mais uma vez parabéns pela denuncia.
    Profa. Iarle Ferreira

  13. Apesar de não ter acompanhado muito o caso, achei muito triste.

  14. Gostaria de encaminhar-te algo que já veiculei entre amigos, mas cuja extensão não caberia aqui.
    Poderias me mandar teu e-mail?
    Grato,
    Humberto Guedes
    Advogado no Rio de Janeiro

  15. Fantástico texto, fantásticas interpretações… Confesso que, com tantos tititis, porquês e esse apelo da mídia, não me liguei nesse fato.
    A mulher sendo forçada a ser submissa, mesmo quando esta tem opinião própria, personalidade o suficiente para saber o que quer, não é respeitada.
    A mídia em geral está mais preocupada em saber quem deu o primeiro tiro, quem fez a “merda” primeiro, se foi o rapaz desnorteado ou a estúpida polícia (ninguém sabe mais qual é sua função, atrapalhar ou ajudar), enquanto o que realmente importa, o que realmente merece a nossa atenção é o motivo que levam os homens (alguns) a uma não aceitação da opinião de suas parceiras ou de qualquer mulher, quando estas divergem de suas vontades e interesses. Se bem que aceitar ninguém é obrigado, mas deve existir o mínimo de respeito, se Deus que é o Todo Poderoso nos deu o livre arbítrio, por que vocês homens teimam em tirar-nos?

    Posso estar dizendo besteira, mas da mesma forma que os negros sofrem em busca de uma igualdade por causa de um passado que se reflete hoje e ainda refletirá por um bom tempo, as mulheres estão numa situação parecida, devido a um passado onde as sociedade era totalmente patriacal (e ainda é!), a mulher é o sinônimo de fragilidade e se resume em criar filhos e cuidar da casa e só, ai dela se ousar pensar por si mesma, ou tomar qualquer decisão espontânea…

    Mas é isso!!!

    Valeu pelo texto, deu para refletir legal!

  16. Sandra,

    Muito bom o texto. É preciso chamar a atenção para outros olhares em relação a este caso: como a violência contra a mulher, mostrado no seu texto. Pois, na realidade, a mídia, de uma forma geral, está mais preocupada com o sensacionalismo e a audiência.

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