Vestígios dos dias

Gosto da cronologia, linear, daquelas que a gente marca no calendário. Dos dias nos quais o inusitado acontece e simboliza algo que vai te acompanhar a vida inteira. É aquele número repetido que ano após anos consegue te emocionar. Sou daquelas que lembra que os números representam algum acontecimento, paisagem, sabor, cheiro, raiva, alegria. Não entendo nada de cabala, de numerologia, absolutamente nada disso. Apenas acho que os números são parte de mim. Uma contabilidade conjugada em imaginário.

Celebro as datas dos amigos e amigas. As minhas em particular. Passeio entre as lembranças de quando as comemorações eram bem quadrangulares e se restringiam ao nascimento, São João, Natal e Ano Novo. E depois foram se tornando grandes pontos importantes na espiral da vida. Aí foi se inserindo as conexões profundas dos momentos de vida de amigos e amigas, de amores, das perdas. Gosto de acumular momentos inesquecíveis. Embora despercebida dos detalhes do espaço, é no Tempo que fui construindo a expertise se selecionar o mais mágico da vida. E sei leitores e leitoras, que é um ponto de vista microscópico, bem particular. As datas cada pessoa vai tecendo dentro de um mapa simbólico bem singular.

As minhas datas, infinitas como galáxias são desenhadas com sonoridades. Por isso sempre agreguei as músicas. E as playlists antes materializadas com o magnetismo das fitas k7 (que ainda guardo), foram se desdobrando nas nuvens e espaços de compartilhamento com as pessoas mais próximas. E as fotografias então… Eita que a escrita com a Luz segue explodindo como fogos de artifício possibilitando sempre grandes encontro e felicidades mil.

Enquanto escrevo degusto a delícia de celebrar o vivido com a vontade imensa de escutar alto, e de frente para lua cheia, o estouro dos espumantes, como se estivesse na passagem do Ano Novo. Assim vou atravessando a linha tênue e inesperada do cotidiano. Observo diariamente a flor amarela que brota da trepadeira que borda minha varanda. Ela me fala muito sobre a liquidez da existência. Sei que ao fim do dia partirá, e dia seguinte renascendo. E toda essa delicadeza de certo modo vai guindo. Me ensina a abraçar a vida em toda sua potência, ainda que inumeráveis sejam os desafios.

As datas, que lindas que são, a inscrição de uma vida nas outras vidas. O tempo transformado em acontecimento, existência compartilhada, Terra comum e seus sons. E o tempo histórico? Esse palco infindo de exercício da Liberdade, Justiça e Paz.

Observo as paredes da casa-semente, antes habitada. Hoje cercada de signos, de livros, as fotografias, e de vestígios dos anos e suas labutas. Um anexo de nós mesmos. As datas e sua arqueologia. Seu mundo não dito e subterrâneo. Os desejos empurrando a porta para a gente seguir adiante mesmo nas situações mais adversas.

Bom a gente celebrar, ainda que não haja a festa. A alma tem infinitas formas de festejar. Na imaginação eu já fui até bailarina dançando suspensa pelo vento. Já fui sereia imersa na numinosidade dos mares, encontrando simbolicamente explosões das alegrias que a gente carrega no marco do que nos faz tão bem.

Nos momentos celebrativos cabe o rabisco na folha do guardanapo de alguma lanchonete. A folha que caiu da árvore e que você guarda dentro do caderno e espera secar, carregando ao longo de anos a fio. E, passados décadas, ainda consegue viver a emoção do vestígio do cheiro e da felicidade dos momentos primordiais reencontrados.

Não escapo as datas. Nem fujo mesmo, deixo acontecer. Não quero escapar dessas pequenas transbordantes felicidades. Ainda que só existam sob certo sentido em meu universo particular. Porque acho bom ver desabar o que é bom sobre nossas cabeças. Se por vezes a gente carrega o tranco da vida. É emocionante se dar conta do que há de especial na construção de um dia que foge a regularidade do calendário.

Pensar que cada ser humano de forma singular vai tecendo, costurando os pontos de Luminosidade em sua própria mandala, esse mapa do Ser, repleta de pontos de chegada e partida imprevisíveis.

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