O pássaro

As águas de março começaram a cair, e aqui, eu penso por vezes estar presa em dezembro de 2020. Não por acaso ontem vi uma reportagem sobre Wuhan, onde os primeiros casos da Covid-19 foram registrados, enquanto o resto do mundo estava pouco atento. Um ano passou, a sensação é que vivemos, ou tivemos um delay, pelo menos do Brasil, que nos manteve fixo na mesma cena de terror: milhares de pessoas mortas, anônimas, conhecidas, íntimas…

E o medo? Passou a ser essa companhia constante, de forma velada ou escancarada. Só que pior é o cinismo, esse sim, algoz.

Há dois dias que um bem-te-vi atordoado, ou perdido, esbarra em minha janela. Bate com força, parece querer entrar. Bem de manhã cedo, eu, de sobressalto, pulo da cama, arrasto a cortina, dou de cara com seus olhos arregalados, e suas asas a bater. Não posso fazê-lo entrar, e o que resta é movimentar a cortina para que ele possa quem sabe alçar melhor seu vôo. Dois dias seguidos. Enquanto ele voa eu sonho, do lado de dentro de mim mesma faço as malas. O destino, encontrar quem já partiu. Acordo, e lembro de tentar reunir as coisas de que a irmã poderia gostar.

O sonho encobre meu pânico de ir embora também, assim, sabe, precocemente. E o que a gente faz para distrair disso, enquanto sente algum abalo no corpo que pode até significar de fato alguma ameça de ter um bilhete em mãos?

O pássaro sem ele querer me faz lembrar de uma galo de campina que meu pai teve. Era estranho demais chegar na casa dele e ver uma gaiola, com um bicho tão pequeno. Impensável aos meus olhos ver um pássaro preso. No ano em que meu pai adoeceu, o pássaro também se foi. E toda vez que lembro dos dias findos de painho, a sensação é de que partiu como um passarinho.

Eu não sei vocês que estão lendo esse relato. Mas há dias que só dá vontade de chorar, chorar, e chorar bem muito. Ainda bem que as águas de março começaram a cair. Porque assim a gente assimila melhor as lágrimas, e as transforma em vigor, verdejar, limpar, aliviar, aconchegar.

Uma das coisas boas da vida é poder se desmanchar em chuva. Poder ver o céu cinza, as nuvens densas se esvaindo em listras imensas, sentir a ventania intensa. Chuva inteira, chuva completa, chuva de vento, seus raios e trovões. Alívio é poder rasgar a rua, de biqueira em biqueira, rindo do nada. E a vontade galopante de engilhar-se nas águas macias e frias.

Engraçado que as memórias das chuvas sempre têm cheiro, e cheiro bom. As chuvas quem sabe nos ajudam a abrir as gaiolas, cortar o laço do passarinheiro. É inevitável o desejo de sair correndo no meio da chuva, essa latência sempre está presente. Encarar a luz da chuva como um grande rebatedor.

Os dias de pandemia por vezes parecem um deserto, e a gente vai tentando tomar um gole de água aqui, outro ali. Vai ensejando encontrar um oásis a ser compartilhado por todas as pessoas. Não é fácil. Ainda assim seguimos tentando estar inteiros, sobreviver, se animar, fazer sorrir e sorrir também. Não é tarefa fácil achar riso num tempo desses.

Há momento em que é bem difícil escrever durante a pandemia, ao passo que é também uma necessidade, como o ato de fazer um arranjo novo para uma antiga canção que já se escutou ou tocou inúmeras vezes, durante décadas. O movimento de criar um texto vai reconstruindo milagrosamente dentro de nós algum limiar de esperança.

Esperança é o que cultivo nesse momento. Solidariedade sinto como um grande desafio, sobretudo aos que mais necessitam. As necessidades hoje são imensas, de toda ordem. E às vezes só ouvir da boca de alguém um eu te amo é um milagre que nos faz transbordar e crer. Só que hoje a realidade nos pede mais que palavras, ou clama para que as palavras possam fazer sentido, possam trazer vida, nutrir cura.

Por um certo momento fico me perguntando o que são mesmos as palavras, porque procuro entender um pouco desse mundo através dos enunciados, da força transformadora da enunciação. Embora sinta, nesse momento, a força de um silêncio que não sei bem explicar.

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