Direccíon de escape

Esses dias concluí a leitura de “Direccíon de escape”, da escritora argentina Coca Trillini. O livro saiu pela Paradiso, da Argentina. A editora inclusive mostrou um atendimento muito eficiente e atencioso. O livro fala de atitudes profundas quando tratamos da urgência da vida. Sobretudo diante do fato de se estar com um câncer. O livro não é sobre a doença por si mesma ou sobre um imaginário fixado sobre o que seja estar com câncer. As palavras de Trillini conjuga o processo de convívio consigo mesma e suas interações durante as etapas de um tratamento, desde o diagnóstico até sua liberação do tratamento. Um evento difícil que a autora descreve numa escrita-diário.

Conheci a Coca Trillini em 2000, no Chile, num momento muito particular de minha vida, e pude contar com sua sororidade, quando essa palavra ainda não circulava muito entre os movimentos de mulheres. Uma atitude definitiva para nosso vínculo afetivo ao longo da vida. Ler suas palavras sobre a experiência vivida me aproximou ainda mais da sua caminhada. Ela é uma narradora que traz seu humor inteligente para a escrita. Como falar sobre um câncer com humor? Pois é, a autora consegue. Ao passo que desconstrói obviedades quando se trata do tema quando confronta as reações do senso comum ao se deparar com mulheres acometidas com câncer.

A escrita como um processo de cura e autocuidado. Assim fiquei pensando, e ainda sigo. As palavras de Coca Trillini permanecerão comigo durante muitos anos enfim. Essa escrita situada em primeira pessoa. Essa escrita feminina falando do nosso medo quando vamos fazer os exames de rotina. Todas nós temos muito, mas muito medo de um diagnóstico de câncer durante a checagem anual. E essa tensão se repete anualmente nas salas frias onde fazemos ultrassom e mamografia. Engraçado que muitas pessoas que convivem com mulheres são totalmente indiferentes a esse temor.

Adorei no livro como a autora traz as imagens do inconsciente para a narrativa. Considero que trazer o regime noturno para a cena foi uma atitude corajosa e relevante para se compreender o vivido e representá-lo. Narrar não só o encontra-se enferma, é mais que isso, é tecer um movimento de restauração que implica não só o acesso ao tratamento difícil e suas etapas. Não significa só a luta pela sobrevivência, pela vida. Significa procurar melhor entender-se e na semantização sobre si mesma com câncer poder imprimir significados que são potentes e restauradores, e têm um poder de cura tanto quanto medicações e tantos outros cuidados.

Não espere um livro de auto-ajuda, porque “Direccíon de Escape” não faz esse percurso. É um livro muito direto, tanto quanto a autora, é também instigante, daqueles em que você é catucado, ou seja, provocado a pensar mais além que os estereótipos sobre a enfermidade, tratamento e cura. Como já falei, lendo a gente vai dar as boas gargalhadas. É o humor portenho, inteligente, cortante e capaz de fazer rir diante de verdades difíceis de serem ditas.

Lendo eu me pus a pensar sobre como o câncer atravessa nossas histórias. E se faz importante narrar, ainda que não seja num livro, que seja numa terapia, ou no movimento de partilha entre amigas e amigos. Além do câncer, a Covid-19, a depressão, a ansiedade, a solidão extrema, os distúrbios alimentares, as dores crônicas, o desalento, a precarização da vida…

Fiquei refletindo ainda sobre a escrita como uma atitude corajosa de autocuidado. E acho que além da escrita, as linguagens criativas como a música, o desenho, a pintura, a fotografia, e muitas atividades manuais são parte importante do que chamamos “sanacíon”. Num contexto em que a enfermidade da Covid-19 não é uma metáfora, nem “gripezinha”, me parece urgente mesmo a vacina, a solidariedade, o auto-cuidado, o esforço de reconstrução de si e do próximo.

No sertão, a gente antigamente não ousava falar no nome câncer, se dizia assim, “fulano está com aquela doença”. Avançamos um pouco, nomeamos, e hoje falamos mais abertamente sobre o tema. Mais é preciso bem mais que isso. E a narrativa da Coca Trillini contribui muito para entender o que se passa no percurso dessa experiência, sobretudo, no mundo das mulheres.

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