Infantilidades

Sempre que vejo uma mulher grávida ou uma criança, intimamente eu fecho os olhos. É a mesma sensação de quando vejo uma estrela cadente iluminar os céus. É uma emoção. Peço para Deus guiar a vida daquele ser. Quando olho às vezes para uma pessoa adulta, fico pensando na criança que um dia ela foi. As crianças são tão potentes, o que fazemos da infância?

Essa semana pude ver várias imagens de pessoas amadas, colegas, próximos ou distantes. Eram registros de quando eram crianças. Como tenho amigos e amigas de diferentes gerações pude transitar em diferentes contextos históricos de infância, tocando matizes imagéticas esteticamente muito interessantes. Fotos preto e branco, sépias, tecnicolor, coloridas, imagens de origem analógica e digital. E os cenários das crianças? Na primeira comunhão, no colo de avôs e avós, na escola, nas praças, nas praias e ruas. Ah as ruas, que um dia foram o paraíso da liberdade para as crianças, em que podíamos correr de pés descalços, brincar de barra bandeira, pega-pega, de bola, de carrinho de rolimã, garrafão… Ai que saudade das ruas onde não existiam tantas ameaças.

As desigualdades sociais retiraram em grande medida, das crianças o direito à rua, a poder interagir com outras crianças sem medo e preconceito. Menino e meninas nascem e vão sendo embalados, emplastificados, numa vida estruturada pela mediação tecnológica que muitas vezes homogeniza demais as crianças, algumas crianças. Por que há muitas infâncias e modos mil de viver esse momento da vida. Observando flashes dos registros de criança de pessoas queridas percebi que éramos menos solitários, mais autônomos…

O abandono material ou intelectual tem sido uma constante na vida dos infantes em qualquer tempo histórico, mas hoje parece ser mais visível. As carências não são definidas apenas pelo aspecto econômico da vida. Já testemunhei bastante crianças supridas materialmente, e totalmente desconsideradas como gente. Aparecendo lindas nas fotografias de família e vivendo dramas infames, largadas em escolas, cursos de idiomas, aulas de natação, música, xadrez, esportes. Sem tempo, sem pai, sem mãe, sem avôs ou avós, passando mais tempo enfrentando o trânsito que brincando ou convivendo com outras crianças.

Tive a oportunidade de ser criança. Mesmo convivendo com irmãos e irmã bem mais crescidos que eu. Vi nas fotos que observei que muitos de nós pudemos ser crianças. Não existia exigência normativa do sucesso, de ser o número 1, ou a exigência da nota 10 no boletim que tem desestruturado tantas crianças e adolescentes. Não existia a exigência de ser o corpo ideal usado a para vender roupa, bolsa, maquiagem, produtos esportivos… E convivíamos crianças brancas, negras, indígenas, todos brincando e brigando, se estapeando, se insultando, pedindo desculpas, chorando, caindo e levantando. A raiva produzida nos conflitos durava pouca e nos ensinava demais sobre o respeito à individualidade. Crescer num ambiente não homogêneo no tocante à classe social, gênero, etnia, nacionalidades e religiosidades é bem fundamental para qualquer humano.

A padronização dos modos de vida e convívio prejudica demais às crianças que muitas vezes crescem sem saber lidar com outro ser humano e consigo mesma. E desde cedo enraíza preconceitos infames que reverberam em sua vida de adulta.

É inaceitável que crianças morram no Brasil por balas perdidas, que sejam lançadas violentamente para a morte como o menino Miguel, que sejam violadas sexualmente por lideranças religiosas ou dentro de suas casas. Que sejam violadas pelo Estado brasileiro mesmo tendo marcos regulatórios importantes de proteção à infância e a adolescência. Que enfrentem atos violentos nas escolas muitas vezes sem nenhuma mediação e enfrentamento por parte de educadores e gestores escolares. Certa vez ouvi de um aluno meu, maior de idade, dizer que sofrera bullying de uns cinco anos até o ensino médio.

É preciso ter infância mesmo na maturidade. Trazer consigo a eterna novidade do mundo, a condição de amar e ser amado, de esperançar, de ter gestos espontâneos, de fazer munganga sem se importar com qualquer julgamento, poder brincar, poder estar profundamente vinculado a experiência de seu corpo, de sua sexualidade, de seu direito a se expressar e ser ouvido, respeitado e compreendido. Ser criança na maturidade não significa ser um descapacitado, pode ser simplesmente a experiência de integração com nossos ciclos mais vitais de amor e de perceber a vida como dádiva.

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