A profetisa do sol nascente

Eu a conheci há cinco anos precisamente. Fui observando que acordávamos meio que no mesmo horário. Mas acredito que ela até mais cedo que eu. Corpo franzino, cabelo cor do sol desbotado. Parece cabelo de surfista. Ela sempre me chamou a atenção, ela me chama a atenção sempre. Povoa minha imaginação, faz surgir muitas questões, de toda ordem. Comecei a sair bem cedo, atravessando o portão de casa, de bóia na mão, touca na cabeça. Enquanto saia para nadar, seguíamos pela calçadinha.

Ela sempre vem com seu carrinho de mão. Um carrinho de feira, um casaco, camiseta, calça. Ela tem uma casa-casulo nas mãos. Possui ainda um mundo invisível. É esse lugar invisível, inalcançável que move minhas questões enquanto a vejo. Fiquei inicialmente meses a fio dizendo sempre bom dia. As duas, cruzando a mesma calçada, seguindo em direção ao leste. Eu cruzando as fronteiras do medo e mergulhando no mar. Ela trazendo a casa-casulo, por um momento parando entre os cactos, a restinga, a areia do mar, os coqueiros e abrindo um palácio abstrato na direção do sol nascente. Anos passei vendo sua gestualidade rumo à direção do vento. Falando ao infinito.

A arquitetura daquela casa sem muros habitada por ela me prendeu ao longo desses anos. Sempre que passo pelo espaço, estando ela lá ou não, me deparo com a presença concreta dessa casa-casulo dessa mulher. Carrega consigo poucas coisas, tudo cabe em pouquíssimas bolsas, mínimas. Tem uma lona, um guarda-sol que usa pouco. Vez por outra ela abre. Percebo que a espacialidade é o infinito, que se subdivide entre as panelas, e uns galhos a que ela faz de varal.

A escuto, sua voz na direção do sol nascente. Sempre que a escuto, suas palavras voando conduzidas pelo vento, faça chuva ou sol, e algo me faz lembrar do profeta João Batista, e do trecho da bíblia que em que ele fala: “voz que clama no deserto, preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas”. Porque a vejo clamando, sol a pino, sob o sol, sobre as areias do Cabo Branco, como diz o poeta Políbio Alves, a leste dos homens. Por vezes suas preces e profecias, enigmáticas para mim, alcançam a noite, atravessam a peleja do dia, enquanto a vida cotidiana se processa com seu corre-corre. Em algumas noites, as mais silenciosas, por vezes escuto seus clamores e pregações vindo através do vento, junto com as batidas das ondas do mar.

Nunca parei muito tempo para escutá-la em toda sua homilia, preciso fazer isso um dia. Porque eu sei, que por mais inusitado que possa parecer, e para muitos sem nexo, há lógica naquilo que faz, porque acredita, tem fé. Fico até me questionando se não a fé, mas a religiosidade a tenha maltratado, criado nela uma rota de não retorno. Ou por vezes fico confabulado que tenha até encontrado um caminho melhor e largado tudo o que por ventura lhe era insustentável. As fronteiras sempre lá, invisíveis fronteiras, perceptíveis e de certa maneira impalpáveis, nos lugares mais submersos em nós, limítrofes e tênues lugares, pulsantes e inacreditáveis. Inconsciente e “razão”. “Sanidade”? “Loucura”? Penso que algumas pessoas precisam existir ou em um não lugar normativo, ou criar um próprio lugar para si, por mais difícil que possa ser, para fugir ou lidar um sofrimento e com suas virtudes.

Depois de alguns anos dizendo bom dia, e por vezes boa noite, decidi perguntar seu nome. E ela me confidenciou. Sandra também. Eu sorri e fiz a minha confidência. Sorrimos e dissemos tchau. Habitando a mesma praia, como se fossemos mulheres berberes atravessando seus desertos.

Recentemente quando a pandemia por Covid-19 se instalou na cidade ficava sempre me perguntando onde estaria, como estaria. Espreitei muitas vezes pela janela do carro à procura de qualquer sinal. Não a via onde geralmente dormia. E sempre me perguntava: onde será que ela está? Meu esposo, observador e certeiro me disse, deve ter permanecido no lugar de sempre.

Essa semana sai de casa para resolver coisas domésticas, neurótica com a Covid-19, e ao entrar num mercado do bairro vizinho, depois de meses sem sair de casa para isso, me senti como se estivesse atravessando a Faixa de Gaza, ou qualquer território em conflito, ou campo minado. A pandemia aumentando nossas neuroses. Na volta para casa observo cada canto de restinga ao pingo do meio dia, quando vejo que suas coisas estão na casa-casulo, trazendo as frestas de sol sua visibilidade. Fui inundada de alegria por saber que estava viva, ali, ao vento, profetizando numa linguagem que o mundo não compreende bem. Parei o carro, deixamos algumas laranjas, sorrimos, e sua presença me trouxe uma interior e clandestina felicidade.

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