Luto e Covid-19

Sempre que olho os números que traçam o percurso da morbidade da Covid-19 fico pensando na tristeza que assola milhares de pessoas pelas perdas vividas. E fico refletindo como esse é um aspecto muito importante que autoridades precisam levar em conta. Para viver o luto é preciso tempo e cuidado, e também autocuidado. Estamos diariamente vivendo uma tragédia, se não é a minha de modo particular, me toca, porque é o meu povo, meu país. E sei que tudo isso significa um impacto profundo sob vários aspectos da vida social.

Embora queiramos fugir, por motivos que são compreensíveis, é preciso tocar nesse assunto. Lembro que recentemente o tema do luto foi bastante abordado com o crime ambiental em Brumadinho, onde era urgente poder velar e enterrar os mortos. Recordo que a jornalista Eliane Brum se reportava ao luto e sofrimento da população em Altamira, diante da violência institucional pela imposição de uma obra hídrica como a usina hidrelétrica de Belo Monte.

Atravessando a pandemia do Coronavírus observo o impacto causado pela impossibilidade de ter o tempo nem as condições necessárias para que se vele e enterre as pessoas amadas, através dos rituais que tanto significam para o entendimento da passagem das pessoas que se amam. A Covid-19 traz o abrupto. Perder alguém de forma abrupta. Sei bem o que significa. Agora não dispor de um tempo de significar que representa poder velar seus mortos é outro tapa na cara de todas as pessoas, é outra dor agregada. Porque a experiência de preparar o corpo, se reunir em torno dele, preparar esse ritual de passagem, do último adeus, estar entre as pessoas amadas e receber as homenagens e condolências é sobretudo uma necessidade, em todos os tempos. E isso tem sido roubado pela tragédia da pandemia.

Refletir sobre os significados da Covid-19 na medida em que atravesso esse tempo tão repleto de desafios me interpela a sugerir aos gestores públicos, universidades, igrejas, escolas, a sociedade como todo, a olhar para a necessidade de criar espaços terapêuticos acessíveis para que esse luto possa ser ressignificado. Para que possamos falar sobre as dores, os medos, a revolta, as angústias que pairam entre nós nesse tempo. Há dores que são inomináveis mas que podem ser tratadas, cada pessoa tem seu tempo para aprender a lidar com elas, a superar e a ressignificar o sentido de suas perdas.

Observar apenas para o aspecto econômico da pandemia é muito cruel. Embora seja compreensível a discussão sobre esse tópico. Penso que as perdas desse momento não podem ser observadas como algo fragmentado, ou circunscritas apenas às famílias e/ou pessoas que perderam alguém querido: filho, pai, mãe, amigo, tio(a), avós… Essas mortes não podem ser encaradas circunscritas ao âmbito privado.

A Covid-19 é uma questão de saúde pública com sérias implicações no social, o luto, seus impactos e desdobramentos é parte desse momento. O luto a gente carrega por um tempo, tem uma duração. Nele a gente vai tecendo sempre sentidos, todos com muita profundidade. No tempo do luto a gente chora, e por vezes rir ao lembrar dos momentos mais felizes. Por vezes o luto nos imobiliza. Em certas horas a gente chega até desejar ir junto com quem partiu, por achar que não aguentará viver sem a pessoa que se ama. O luto nos faz sentir o desemparo e a plenitude do amor.

Estar enlutado é um tempo particular que não está submetido a uma cronologia regular das horas do relógio. Esse tempo interior do luto é bem mais complexo, pode sumir e reaparecer. Ele também tece muitas paisagens trazidas pelas memórias, traz questões emblemáticas do caráter relacional entre quem partiu e quem ficou. Como silenciar esse tempo de luto? Por quê não falar sobre ele, se aparece nos regimes diurnos e noturnos, consciente e inconscientemente? Se abafamos, inutilmente, ele estará lá fazendo seus rastros, suas rachaduras em nós. No interior de suas camadas vai continuar ali, latente, mesmo sufocado, vai trazer seus espasmos…

Espero que possamos socialmente estar atentos e sensíveis a esse momento de luto. Não cultuando a morbidade espetacularizando as mortes. Mas de alguma maneira acolhendo o sentimento que esse momento evoca e a solidariedade e cuidado que exige. Lembro que na minha infância, quando alguém da rua morria, mesmo que não conhecêssemos, tínhamos o dever de acolher aquela perda no cotidiano. A contrição no interior das casas, onde não se ligava nem rádio, nem TV, nem se fazia qualquer festa, era a expressão de respeito, empatia e aceitação da nossa condição humana, finita.

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