Quase uma canção

Eu nunca achei o mundo um lugar muito “normal”. Para falar a verdade esses conceitos sobre normalidade e anormalidade são muito estranhos para mim, de verdade. Talvez ordinários, extraordinários, comuns, incomuns sejam palavras mais plausíveis, talvez. A questão é que esse tempo sob a égide de uma peste “nova”, inusitada vem carregado de estranhamento.

Estranhamento pela clausura como alternativa de não contaminação, ou como que para escapar de uma contaminação instantânea. Mais inusitado ainda observar como uma evidência tão clara e simples pode ser para algumas pessoas inaceitável, enquanto se admite e festeja a morte de milhares. Pode o hediondo se tornar regra, normatizar o social?

As nuvens marcam um tempo que não dá para ser medido no relógio. As músicas, quando possíveis de serem ouvidas, emergindo com percursos, estradas para se trilhar ainda que estando em casa. Vivências de imersão e purificação da toxidade do mundo. Ai vem o Milton Nascimento e Criolo pedindo “um gole de vida”, cantando juntos “Não existe amor em SP”.

O instrumentista Amaro Freitas tocando lindamente um piano solene que caminha junto com as vozes de Milton e Criolo em harmonia. Cada dedilhar trazendo uma possibilidade de transmutar as dores silenciosas e profundas pelas perdas concretas, cotidianas: da irmã, de amigos, de artistas, de alguém que é amado por outro alguém e sempre significou amor. Músicas para ajudar a lidar com os gritos de mães, pais, irmãos e irmãs que clamam por UTIs por esse Brasil inteiro.

Por algum momento sinto que é preciso fechar as janelas, vendar os olhos digitais que parecem umas matrioskas que se abrem infinitamente, freneticamente a cada segundo, trazendo excessivas informações e fragmentação.

A quarentena que se amplia é um tempo quase inclassificável. E sinto que preciso pensar com a respiração, com toda consciência de que dela preciso mais que nunca. É para acalmar, e poder me resgatar do precipício da celeridade, das sobrecargas de trabalho que já me impus, sem que houvesse qualquer necessidade.

O que são as nossas necessidades? A parada mundial estraçalhando um sistema produtivo de coisas supérfluas que fomos introjetando como “essenciais”. Fico como quem senta para catar feijão buscando debulhar o que é mais elementar. Tentando ficar agarrada na Esperança de que não haja mais perdas humanas. Penso até numa frase dita por Norbert Elias, no livro “A Sociedade dos Indivíduos” de que toda a sociedade humana consiste em indivíduos distintos e todo indivíduo humano só se humaniza ao aprender a agir, falar e sentir no convívio com outros.

Como conviver aqui, agora, e depois daqui? Lembro do personagem Tonho, do filme “Abril Despedaçado”, fugindo da “sina” de ter que vingar o sangue da família. Porque os que carregam as mãos banhadas de sangue, de sangue inocente, por mais que tentem, não vão fugir ao Juízo, de onde quer que ele possa vir. Numa realidade de pandemia no Brasil perversidade, incompetência, conivência faz com que haja um mar de sangue só visível nas imagens das valas, inúmeras, gigantescas, espalhadas pelos cemitérios a céu abertos.

Como não se deixar aprisionar ainda pela indiferença, uma praga que também se alastra no país? Como lidar com “pessoas” que se contentam com mortes, provocadas também pelas desigualdades e como resultantes de uma necropolítica que segue matando junto com vírus?

Como cuidar e autocuidar-se? Observo e percebo as pessoas orando, rezando, cantando mantras… buscando no íntimo uma salvação ou esperança. Vejo as escapatórias virem das máscaras, de palavras de afeto, de receitas, de doações que chegam em forma de alimento. Nesses dias em que as lives pipocam por minuto, acolho o esforço e talento dos artistas verdadeiros do Brasil se traduzindo em expressão de amor, compromisso, com muita dignidade e preciosismo. Alguns, não todos, não figuras toscas, oportunistas e insensíveis, não à política do pão e circo.

Fico imaginando que imagens eu vou guardar dessa vivência, como vamos sobreviver, são tantas as questões. O mais essencial é viver, sem dúvidas, talvez até sem carta de navegação tão explícita. E como reencontrar meu cais da paz sem sair do lugar? Nossa, mulher, como hoje são tantas perguntas não? Essas perguntas pirilampos saltitando assim na cabeça entre uma e outra canção…

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *