Oitenta anos

Escrevo esse texto na data em que mainha faria 80 anos. Nasceu em 04 de fevereiro, e a registraram noutra data, como era comum num interior dos anos 1940. O sertão nunca saíra dela, tão pouco ela gostava em sair de lá. Raríssimas foras às vezes que topou essa aventura. Não gostava de lugar nenhum a não ser aquele que chamava de seu. Poderia ter sido atriz de teatro por ser performática demais, e agrônoma, tamanho era seu amor pela terra, pelas plantas. Não conto as vezes que recusou ficar mais tempo comigo no litoral, por causa de suas plantas.

Graças a ela pude, na infância, brincar com pés de tomates, pimentões, frutas, mastruz,

manjericão, porque sabia fazer de qualquer quintal uma floresta encantada. Não por acaso sempre carrego comigo onde for um pé de malva, e aperto suas folhas em dias de grande saudade, porque seu cheiro me lembra muito o odor da infância ao lado de mainha. Não pôde seguir estudando, porque a família, a religião e a sociedade impuseram a maternidade como profissão não remunerada. Ela por um tempo levou essa obrigação, por outro se rebelou, amou e reinventou tantas vezes esse lugar dentro de si. Comigo foi mais que mãe, soube ser amiga, porque eu nasci num tempo em que ela tinha mais maturidade e muita resiliência. Penso que ela teria sido diferente comigo se tivesse sido uma mãe aos dezesseis anos.

Sobrevivi sexta filha de uma mãe que teve dezesseis gestações e perdera oito filhos. Porque no interior do Brasil dos anos 50, 60, 70 e 80 e talvez infelizmente ainda hoje, a mortalidade infantil era tão “natural” quanto respirar. E ninguém se preocupava com o luto das mulheres. Depressão pós-parto? Ninguém falava sobre isso, apenas se dizia que uma mulher havia “injeitado” algum filho e a comunidade a culpava fortemente. Por vezes tenho a impressão de que mainha tenha adotado a estratégia de sobrevivência de ser uma mãe personalizada para cada um dos filhos, conforme o tempo, a conjuntura, e amou a todos.

Apesar dos desafios que enfrentou era tinha ótimo humor, sabia sorrir, e isso era de uma magia inacreditável. Porque sempre achei seu sorriso um milagre diante das dificuldades que enfrentou num contexto social tão violento contra as mulheres. Sempre achei minha mãe uma sobrevivente. Não era arrogante, mas era muito, muito orgulhosa. Dizia pra mim que não se deve nem favor. Morreu sem dever a ninguém. Tinha poucas e raras amigas, em geral alguma vizinha ou alguma das antigas de sua juventude. Era de fazer visita a uma delas quando tinha saudade.

Sua vaidade foi se restringindo ao longo do tempo, mas nunca deixou de cuidar dos cabelos lindos, sobrancelhas e das unhas. Não teve tempo de envelhecer porque morreu na chegada da maturidade, aos 63. Imagino, para aliviar a frustração de não ter uma mãe idosa, que ela talvez tenha antecipado algumas décadas e as vivido loucamente, num tempo só seu.

O melhor que fez por mim foi me deixar partir. Ela sempre soube que isso aconteceria, porque me educou para isso. Por mais saudade e preocupação que tenha trazido, quisemos as duas assim. E quando a hora de deixar o ninho chegou a gente sofreu muito. Só que nos reencontros eu sempre cantava “De volta pro meu aconchego”, e a gente se abraçava e dançava juntas. Nossa canção.

E quando chegou a vez dela de ir? Deus achou de me botar de volta para casa de mainha, para estar junto. Surpreendida senti os céus se rasgando num dia de junho. Foi tudo tão rápido, tão violento. Mas naquela segunda-feira a gente ainda riu, quando eu e minha irmã demos seu último banho num hospital, ela encabulada, e a gente tentando descontrair. Depois dali foi um “de repente, não mais que de repente… do riso fez-se o pranto”, fomos construindo nosso próprio soneto da separação.

Nosso último momento foi ela, na plena certeza de que estava indo, me puxar pela mão, e me dar um cheiro na testa. Retribui. Naquele entardecer de junho observei o pôr do sol caminhando de mãos dadas com meu filho e a intuição me falando do que não queria escutar. Ao cair à noite ela seguiu, enquanto eu amamentava e colocava meu filho pra dormir. Nesse dia deixei meu filho para preparar minha mãe, serena. Eu e ela naquele espaço, submersas na escuridão. Juntas pela terceira vez naquele dia, que foi o momento de minha maior solidão.

Nos 80 anos de mainha que não envelheceu, lembro de seus cantores e cantoras favoritas, suas canções que me falam tanto sobre ela e seu amor pela vida: Cartola, Beth Carvalho, Elizeth Cardoso, Amelinha, Sílvio Caldas, Dalva de Oliveira, Dominguinhos, Luís Gonzaga, Vinícius de Moraes, Jackson do Pandeiro, Nélson Gonçalves, Whoody Guthrie, Clara Nunes e tanta, tanta gente linda como minha mãe.

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