As cartas

Essa semana foi difícil escolher o assunto da crônica. Por um lado a realidade, os jornais, o tempo correndo nas manchetes de jornais: enchentes no Espírito Santo e Minas Gerais; corona vírus; erros na condução do ENEM pelo MEC; feminicídios que não param de crescer; queda das bolsas; o show da Alessandra Leão, enfim, uma série de informações que permeiam o cotidiano e que são parte de nossos diálogos e reflexões resultantes de um processo dinâmico e relevante que são os critérios de noticiabilidade. Por outro lado, mais íntimo, as questões latentes, profundas, que povoam um lugar mais à sombra da subjetividade e do inconsciente: a saudade da mãe que faria 80 anos; as demandas profissionais; o medo de estar doente; saudade e solidão; as leituras mais apaixonantes; à espera do livro novo da Clotilde Tavares; a homenagem na formatura de meus alunos e alunas de jornalismo e por aí vai…

No meu armazenamento imaginário de temas, eu lembrei que por quase trinta anos eu troquei uma correspondência muito ativa com Judi Augusto Herrera, que fez aniversário essa semana. Lembrei das cartas por ocasião de seus 80 anos. A conheci ao final dos anos 1980, na cidade de Patos. Na ocasião ela voltava a reencontrar seu lugar de origem, décadas após a família haver migrado para São Paulo. Fizemos amizade, e ela passou a tomar um lugar muito especial.

Acredito que nossas histórias nos comoveram mutuamente e dali surgiu assim um relacionamento que traria grandes emoções e aprendizados contínuos. Ao percorrer a memória afetiva daquelas cartas, penso o quanto mudamos, eu naquela época adolescente, ela entrando na vida adulta. Alguns de seus netos sequer existiam, hoje, já estão concluindo seu doutorado, percorrendo mundo. Ela hoje já é bisavó, e eu, mãe.

Aquelas cartas falavam muito das marés que atravessamos, a gente mergulhava na escrita e se deixava ir até onde o fôlego e a mão aguentavam. Eu nesse tempo de instantaneidade, sinto uma falta enorme das cartas. Ainda vez por outra, me pego comprando bloco para escrever. A gente continua se amando, se falando pela internet, telefone. Mas é claro que não é a mesma coisa. A carta é outra cronologia, as crônicas são constituídas noutra temporalidade, um caminho misterioso a percorrer. Uma vez li num crônica de meu professor Wellington Pereira, que as cartas são bússolas de nosso tempo interior. Nunca esqueci.

Nesses quase trinta anos de relacionamento com a Judi, fomos cartografando nossa história , pontuando tudo na escrita, guardo parte das correspondências, porque a outra o tempo e o vento levaram pelas inúmeras mudanças que fiz. Ainda sonho novamente reencontrar minha queridona, na Fazenda Flamboyant, lugar onde fui parar, a convite dela. Lugar que tanto me ensinou, porque sem ter noção, ela à distância nutriu meus sonhos para voar e amadurecer. Sempre me impressionou nela sua devoção, paciência, talento, inteligência, e linda escrita, embora vez por outra se queixasse de sua letra.

Nas cartas a gente falou de tanta gente, algumas que nem estão mais por aqui. A gente tirou sarro, como dizem por lá. E mangou, como dizem por aqui. Trocamos receitas, segredos e afetos. Reclamamos e reclamamos, fizemos declarações de amor, nos consolamos diante das perdas e sofrimentos. Espalhamos tantas boas notícias, era chegada de gente, aprovação no vestibular, compra de fazenda, de gado, era casamento à vista, chegada de filho, neto e bisneto. Era luto. Era o tudo e mais das nossas vidas, o amor, a saudade, a tristeza, a esperança, tudo escorria por nossos dedos, uma caminhando em direção à outra, sempre.

Enquanto eu escrevo mais uma vez em direção a ela, mesmo compartilhando aqui, tornando público as memórias e afeto, ela está lá, nesse momento, certamente orando, agradecida por esses 80 anos que chegam. Ao acordar hoje bem cedo, ela foi o primeiro pensamento que chegou. Nossas cartas, aquele encontro em 1989, e tudo que dali se processou em nossas vidas. E, confesso, foi muita coisa, partilhada lado a lado, ou a uma distância imensa, conduzida pelas cartas que escrevemos uma para outra.

Uma cartografia que representa uma experiência rara de cumplicidade. E, eu aqui, escrevo para celebrar, agradecer e tecer nessa carta todo meu afeto por essa mulher que certamente me ensinou coisas que ajudaram a transformar a minha vida.

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