Pepeto

Certa vez, o equilíbrio de minha casa foi abalado pela ilustre visita de um menino de treze anos de idade. Bateu à porta procurando por mim. Antes que as janelas estivessem abertas e a casa varrida, aportava na Rua do Prado, meu colega de classe. A presença de um menino à minha procura deixou o exército de jovens e vigilantes irmãos desestabilizado, embora não tenham sido nenhum deles que tenha atendido à porta. A coragem daquele guerreiro-menino que não daria conta do fuzuê causado, do vespeiro agitado me causou profunda comoção, respeito e admiração. Esses sentimentos aliados a um amor profundo são o fundamento de nossa amizade de mais de trinta anos. Naquele tempo, na minha família e cidade, as fronteiras que separavam meninos e meninas eram quase intransponíveis.

Eu mesmo fui educada da primeira à quarta série estudando em cadeiras separadas, me juntava aos meninos na hora do recreio, onde a gente brincava de pega-pega; barra-bandeira; garrafão. Conheci o guerreiro-menino na antiga oitava série, recém-chegado do Colégio Diocesano de Patos. Eloquente, leitor, afável, aberto às novas amizades e a nova escola. Sua presença certamente foi um dos presentes que marcaram o melhor ano da minha vida escolar. Vivi e vivo parte significativa de minha história em instituições educativas, em experiências de ensino formal e na educação popular. Comecei cedo, e sigo até o presente momento. E sempre carrego comigo o sentimento de que a turma de 1988 foi o meu melhor momento no processo de escolarização, porque amizades que se consolidaram naquele momento; decidi com clareza minha profissão escolhida. E pela liberdade, autonomia relativa e aprendizagens na experiência de sair da infância.

Todas essas etapas da vida têm sido vividas ao lado de meu amigo, estando perto ou longe. Com ele eu aprendi muito sobre masculinidade, sem ler um texto sequer, apenas observando e escutando. Foi a partir dele que minha relação com o cinema se intensificou. Nossa ação cineclubista acontecia no quarto do querido Ivontonio Gomes Viana ( in memorian). Assim pude aprender vendo, conversando ao lado de amigas e amigos adolescentes. Inesquecível quando assistimos Laranja Mecânica; Sexo, Mentiras e Vídeo-Tapes; Os fantasmas se divertem e Encaixotando Helena. Era também no quarto-mundo de Ivo que escutávamos Adriana Calcanhoto e Marisa Monte bem em seu início.

Nossas teses eram criadas embaixo da castanhola em frente a sua casa: debates acalorados, risos, raivas, questões, arengas, conciliações. Torcemos muito pela seleção brasileira de voleibol. Jogávamos sem saber, em bando, pelo prazer de estarmos juntos tomando sol ao pingo do meio dia, voltando para casa, tostados pelo sol, fedidos e famintos.

Vimos nossos sobrinhos nascerem e crescerem, se tornarem adultos. Sonhamos com nossas viagens. Optamos inicialmente pela mesma profissão, fizemos vestibular na mesma sala, e juntos escutamos o resultado de nossa aprovação pelo rádio, vendo um pôr-do-sol que sentenciava a partida de casa muito em breve. Como canta o Beto Guedes, “já choramos muito, semeando as canções no vento”. Lágrimas vertidas de saudades pelas partidas, lágrimas de alegria simples ao ver a chuva cair, lágrimas de profunda dor ao ver as pessoas mais queridas nos deixarem. Como lidar com a ausência de Seu Pedrinho, de mainha e painho, e de Ivontonio? De mãos dadas com a vida, como sempre lembra a Ana Coutinho.

Assim seguimos sentindo o tempo nos transformar: de adolescentes à jovens, de jovens a adultos, e de adultos a pessoas que navegam em direção à maturidade da vida, ao envelhecer. Assim espero. Desejo seguir junto na esperança da presença repleta de ternura do meu amigo poético, humano, que não teve pena de emprestar as publicações do Circulo do Livro, no momento mais necessário. Que não se negou a traduzir e cantar junto as músicas do A-ha. Seguir junto ao amigo do tempo presente, da vida urgente, da visão de si sem perder de vista o Outro. Ao amigo que me confirma a profecia bíblica de que “há amigos mais chegados que irmãos”.

Quando setembro chega ao fim, eu sinto na alma esse começo do ciclo de vida dele que se renova, num tempo em que as flores seguem brotando, que as mangueiras começam a parir seus frutos, e que o Sol e o entardecer unem numa visão crepuscular, o sertão e todas paisagens inesquecíveis da vida que partilhamos.

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