Bacurau

Aguardei com muita expectativa o filme mais recente do Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles. Por muitos motivos: por se tratar de um filme realizado no Nordeste, por ser rodado numa comunidade seridó do Rio Grande do Norte, por saber que atores, atrizes e cineastas da Paraíba integraram a equipe do filme. Celebrei a ida a Cannes, ao mundo, e o retorno aos lugares onde foi rodado. Não quis saber nada além disso, fugi das resenhas, das críticas, das reportagens. Até que tentei ir ao pré-lançamento, mas não pude. No último domingo tomei coragem de ir ao encontro do Bacurau.

A imagem primeira do filme me remeteu ao dia em que na adolescência, eu e minha amiga Lourdinha, saímos à noitinha, na buléia de uma caminhonete indo para a zona rural de Teixeira, acompanhando minha irmã, indo a um culto num sítio. Foi a primeira vez que me dei conta da imensidão do Universo, pelas estrelas num céu tão limpo, límpido, constelações inteiras quase à mão. Carreguei comigo aquela visão do Cosmos e vez por outra algo me atualiza daquele momento. Bacurau me levou de volta para uma casa, mas para um cômodo que foi construído pelo meu pai, que sempre insistiu em ficar no sertão, entranhado dentro dos matos, na Caatinga. A territorialidade do filme vez por outra aparece na filmografia brasileira, mas como o Gláuber Rocha, Kléber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, exibem sua potência semântica, os regimes diurnos e noturnos da imaginação do sertão do Brasil.

No filme encontramos nossos ritos, mitos e arquétipos: o bacurau, a rasga mortalha, a curandeira, a rezadeira, a anciã, o cantador, os guerreiros, o cangaço, as putas… Me assustei vendo o filme, por todas as tensões que apresenta. Uma tensão pautada no real, a violência desdobrada, crua, estratégica. Horas depois chorei muito. De saudades dos lugares de origem, das pessoas que partiram e deram todo sentido a espacialidade que a gente carrega uma vida inteira. Chorei diante da brutalidade do mundo de hoje.

Estive o tempo inteiro emocionada por nos ver representados e interpretados na tela, nossos corpos assim como eles são, nossos hibridismos nítidos, nosso sotaque na voz e na linguagem a tratar da banalidade do mal na ideologia do culto às armas e enfrentar os algozes institucionais. Ver o enfrentamento coletivo às ameaças externas, a resistência e o sentido de ser uma comunidade. A memória viva das Ligas Camponesas e a homenagem presente às pessoas que diante de todos os signos de morte optaram pela defesa da vida. Escutar o Réquiem para Matraga me desarnou totalmente, inclusive para enfrentar as cenas fortes que o filme traz para deixar Tarantino de “queixo caído”. Bacurau é pulsante, como me falava Carlos Azevêdo, uma pulsão de morte está ali, e também uma pulsão de vida. Queremos e estamos sobrevivendo, atravessando a escuridão da noite com lucidez e afeto.

A arquitetura das casas do sertão é magistral, uma cartografia que resiste ao longo do tempo, e que o filme mostra de modo excepcional, com sua cultura material e potência de seu simbolismo e espacialidade: a feira, a escola, o museu, a igreja, a bodega, o curral, o quintal, as janelas que se abrem para o mundo. O microcosmo que carrega uma imensidão. O sertão pelo wi-fi, as subversões da tecnologia, e a saliência dos códigos não binários. O filme deixa entrar em cena o silêncio que sertanejos e sertanejas sabem ler, códigos quase invisíveis que sempre estiveram presentes em nosso cotidiano.

Bacurau traz questões históricas e urgentes em torno do direito à água. Em diferentes lugares do mundo há mobilizações diante do Planeta ameaçado pelo nosso modo de vida e consumo, pelas alterações do clima. A privatização da água, infelizmente é uma crescente no mundo inteiro. A crítica a indústria da seca, ao uso eleitoreiro em torno da água e a corrupção também se faz presente no filme.

Ao ver as lindas imagens feitas por drone, revivi as memórias lindas de menina percorrendo o sertão de Lambreta e de Vespa com meu pai, que me levava à frente nas motocas, sem medo algum, deixando meus cabelos longos ao vento, numa liberdade inesquecível, só para encontrar os seu lugar de origem e pertencimento, onde quis viver até o fim de seus dias, quando nos encontramos pela última vez a contemplar juntos aquele céu enluarado de estrelas sorridentes.

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