Negrada

Negrada

Esse texto estava guardado há quase vinte anos. Na verdade ele reflete um pouco sobre um episódio que nunca conseguiu sair da cabeça, ou ser verbalizado de alguma outra forma. Nos últimos meses, ao ver inúmeras imagens em diferentes meios, de pessoas fazendo performances gesticulando armas com as mãos, fui purgando, aos poucos, uma cena que marcou na adolescência.

Era o ano de 1989, consigo lembrar claramente pelo fato deste ter sido um bom ano de chuvas. No Sertão esse é um marcador importante. Nesse dia havia um movimento lindo entre as nuvens levadas fortemente pelo intenso vento, e por uma aquarela turva a se desenhar no céu. O ar cheirava a terra molhada. E era notável o movimento diferente das pessoas nas ruas, tocadas pela alegria ao perceber que as águas iriam dentro em pouco cair dos céus sobre nossas cabeças.

Estava indo à casa do amigo Eripetson Lucena, quando a notícia chegou, nem lembro como e quem trouxe: mataram Negrada. Seu corpo estava na “pedra”. “Ele está no hospital, na pedra”. Não sabia o que era isso, não entendia. Décadas depois fui na “pedra” encontrar alguém muito amada. Mas naquele dia, esse enunciado trouxe a sensação de que tudo havia mudado na atmosfera. Fora o fato de que Negrada estava na pedra, ninguém mais sabia dizer nada. Dalí em diante tudo foi só silêncio.

Naquele caminho pelas ruas da cidade, só me vinha a cabeça a imagem do jovem negro, filho de Dona Inácia, que matriculado em minha escola, era conhecido de muitos. Era um garoto de olhos vivos, que estava muito disponível como “garoto de recados”, fazia de um tudo que lhe pedissem. Acho que sua sobrevivência estava ligada a essa possibilidade. Ele ficava mais fora do que dentro da sala de aula. Quando não estava no Colégio Cepa, podia ser encontrado pelas ruas da cidade. Era gaiato e sorridente.

Fiquei me perguntando: porque mataram Negrada? Quem matou? Essas respostas nunca vieram. Aquele dia para mim trouxe uma percepção de sombra profunda que paira em determinados eventos. É claro que esse é um entendimento do presente. No passado, diante daquele acontecimento, parecia que a preparação para chover se tornara em presságio de dor. Eu não chorei por ele, mas todas as vezes que o céu apresentava algum indício daquele dia de inverno, e trazia e memória daquele dia, seja na luz, nas nuvens, ou odor, e nos ventos, minhas lágrimas caiam a contagotas. Como se a sua morte fosse um acontecimento inacabado. Talvez pelo fato de que nada tenha sido esclarecido.

Nos vestígios desse dia ficou a impressão de uma injustiça. Para mim a condição dele de jovem negro, pobre e que parte de sua vida estava na batalha de sobreviver nas ruas cravaram esses significados em mim. A chuva ficou em suspenso, restou aquela ventania e as nuvens escuras no céu.

Algum tempo depois soube que Negrada havia sido velado num bordel, onde residia uma irmã sua. Quando a informação circulou por correspondência trocada entre amigos, pareceu pitoresca, pelo relato da amiga que morava em Caicó, ao amigo que residia em Patos. Mas no íntimo achei muito humano, das moças, acolherem o jovem de estatura mediana, corpo um pouco robusto e de muita energia. Eu gostaria muito de ter ido ao cabaré na ocasião. Fiquei imaginando à época, a solidariedade daquela comunidade, de sua acolhida ao jovem.

De certo modo aquela foi uma morte silenciada. Ficou em mim como uma porta entreaberta ao longo desses quase vinte anos. Sinto um pouco daquela ventania quando notícias de homicídio de jovens negros são comercializados nas mídias com um apelo perverso que há na monetarização das audiências.

Quando mataram a Marielle Franco e o Anderson lembrei da arma, que empunhada por alguém, havia tirado a vida daquele jovem negro. Mas pensei que a visibilidade sobre esse fato haveria de elucidar a questão. O que não aconteceu até então.

Naquela época eu era muito jovem, entre 14 e 15 anos apenas. Hoje decidi libertar essa memória incômoda, diante de um mal estar presente, causado, pelas imagens armamentistas e fálicas. Por vezes penso que uma arma pode ser a expressão de um falo frustrado, ora confuso consigo mesmo, ou narcicisticamente incapaz de viver fora do mundo criado pela prevalência de seus desejos. Imagino que esta seja uma questão mais além, complexa. Talvez seja uma expressão do fim daquilo que utopicamente acreditamos ser como “imagem e semelhança de Deus”. Não por acaso o discurso sobre Deus emerge fortemente caracterizado por uma mitologia antiga que evoca a guerra, o poder bélico, a destruição do Outro e o fundamento de um tipo de “Ordem”.

A morte de Negrada no inverno de 1989 foi um rito de passagem, me tirou um pouco da ingenuidade que ainda trazia da infância. Ali fui paulatinamente saindo do “romantismo” da vida comunitária e entrando no entendimento do mundo social. Um espanto, nada de natural, além da eminência de chuva, ali existia.

Sandra Raquew Azevêdo.

Comments (1)

  1. Que texto forte e, infelizmente, atual. Quantos Negradas e quantas Marielles já se foram e ainda serão levados pela violência que mira especialmente os pretos?

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